“Valor proveniente da venda de café.” Foi esta enxuta frase que inquietou o economista, historiador e diplomata espanhol Ángel Viñas e o levou a passar horas analisando documentos em arquivos, em busca de informações sobre as origens da fortuna do ex-ditador espanhol Francisco Franco. Ao lado da curiosa frase, um valor nada desprezível: 7,5 milhões de pesetas que, segundo o pesquisador, equivalem a cerca de 85 milhões de euros. Junto ao dinheiro da venda do café, outros valores elevavam a 34 milhões o patrimônio do general.
Os valores revelados em documentos bancários guardados na Fundação Francisco Franco mostram que em agosto de 1940, um ano e quatro meses após tomar o poder na Espanha, o ditador já era dono de uma fortuna expressiva. Militar de carreira alocado em território espanhol no norte da África, Franco promoveu uma tentativa de golpe de Estado, em julho de 1936, o que deu início à violenta Guerra Civil Espanhola. Após vencer o conflito em abril de 1939, o general lideraria uma ditadura de contornos fascistas que duraria até sua morte, em 1975.
Nas décadas posteriores, após a abertura democrática, tornou-se público que os descentes de Franco detinham um grande patrimônio. No entanto, ainda hoje a origem de tal fortuna é pouco conhecida. Esta lacuna é um dos motivos que levaram Angel Viñas a escrever o livro “La otra cara del caudillo” (A outra face do caudilho, em tradução livre), lançado em 2015, e ainda sem previsão de publicação no Brasil. “Ao contrário do que se havia dito e repetido, Franco não era um homem que desprezava os bens materiais”, contesta Viñas. “Ele se fez milionário nos anos da guerra, enquanto seus soldados sofriam e morriam nas frentes de conflito, e no pós-guerra, enquanto a população espanhola passava uma fome medieval”.
As pesquisas realizadas por Viñas, em sua tentativa de reconstruir as principais fontes de enriquecimento de Franco, o levaram a descobrir que, em 1940, cerca de um quinto do patrimônio do caudilho tinha como origem a venda de café. Uma revelação um tanto inesperada, já que – até onde se sabe – Franco nunca se dedicou ao comércio ou cultivo do produto. O pesquisador encontrou, então, uma informação relacionada diretamente ao Brasil. O café vendido pelo caudilho, e que engordou sua conta, teria como origem uma doação do produto feita pelo governo brasileiro em 1939, à época sob a ditadura do Estado Novo liderada por Getúlio Vargas.
“Fiquei estupefato”, relembra Viñas. “Eu tinha várias hipóteses, mas o que não podia suspeitar é que esse dinheiro era fruto de uma venda que Franco fez ao Comissariado de Abastecimentos e Transportes (CAT) de uma doação de 600 toneladas [de café] feita por Vargas”, descreve. Ou seja, o ditador teria vendido ao próprio Estado espanhol o café doado e se apropriado dos valores obtidos.
Segundo a documentação compilada por Viñas, pesquisada nos arquivos do Patrimônio Nacional em Madrid, a doação foi vendida pelo preço oficial tabelado do quilo de café às seções regionais do CAT. É muito provável, porém, que a doação brasileira não tenha passado pelo rigoroso controle estatal do produto, já que o café era um artigo raro e, portanto, bastante valioso. “Conhecendo um pouco o período, imagino que os funcionários da CAT desviaram o produto para o mercado paralelo”, sugere Viñas. “O café era um artigo de luxo destinado aos milionários que conseguiam o produto no mercado negro”, afirma.
Após a Guerra Civil, a Espanha vivia um duríssimo racionamento de alimentos resultante do conflito e de seu isolamento internacional. O pesquisador Pelai Pagès, professor de história contemporânea na Universidade de Barcelona, relata que “a fome era uma realidade para a maioria da população”. Segundo o historiador, “havia produtos que eram um autêntico luxo, inclusive itens elementares como o queijo e o pão branco. O chocolate praticamente não existia. Havia uma carência total e absoluta”.
Pagès contextualiza que, nos anos 1940, havia um mercado paralelo generalizado. “Os agricultores, por exemplo, estavam obrigados a vender toda a colheita do trigo para o Estado. Mas, na realidade, havia muita ocultação da colheita real e uma parte importante da produção ia para o mercado negro”, explica.
Este mercado paralelo “a pequena escala”, segundo Pagès, foi uma prática habitual para a sobrevivência de muitos produtores, principalmente os pequenos. No entanto, a comercialização do café brasileiro provavelmente teria seguido outra lógica. “Havia um mercado negro de grande escala, que faziam os políticos melhor situados dentro do sistema”, conta. “Nos anos 1940, em plena miséria geral da população, surgiram novos ricos e grandes fortunas foram geradas”, afirma o pesquisador, relatando o caso particular de Barcelona, onde uma nova elite ascendeu com a tomada do poder por Franco.
As relações entre Brasil e Espanha
A doação de café detectada por Ángel Viñas não foi a primeira realizada por Vargas à Espanha. Enquanto o país europeu passava por uma situação de grande escassez de alimentos, o Brasil tinha dificuldades em vender toda a sua produção de café, devido à queda nas exportações após a crise econômica de 1929. “As doações tinham carácter humanitário e o Brasil tinha excedentes de café que não vendia, assim podia doar algumas quantidades para diminuir o estoque”, contextualiza Carlos Sixirei Paredes, historiador especializado nas Américas, da Universidade de Vigo.
É difícil saber, entretanto, a dimensão e a regularidade das doações já que há pouca documentação, oficial ou não, sobre o tema. A pesquisadora Ismara Izepi de Souza, especialista em política externa brasileira e professora da Unifesp, aponta que em 1936, ano de início da Guerra Civil espanhola, o governo Vargas teria realizado uma primeira doação em sigilo. “Consegui junto à Fundação Getúlio Vargas uma carta, em tom muito amável, de Franco agradecendo pessoalmente o envio de café”, relata. “Essa doação sigilosa não passa pela documentação do Itamaraty, nem por outras instâncias, isso está no arquivo pessoal do Vargas”, conta a docente. Oficialmente, neste momento, o Brasil reconhecia o governo republicano espanhol, contra quem Franco realizava uma violenta ofensiva militar.
Outro envio detectado por Ismara teria sido realizado às áreas republicanas em 1938. Desta vez, a fonte de informação foram os arquivos do Ministério de Relações Exteriores da Espanha, estudados pela pesquisadora. “Os documentos falam em 10 mil sacos ou 300 mil quilos de café que foram prometidos para a zona republicana e que sairiam do porto de Santos em 30 de novembro de 1938.” No entanto, não há documentação confirmando se a doação efetivamente ocorreu, nem o destino final dela, que pode, por exemplo, ter acabado do lado franquista.
O fato de o governo brasileiro ter supostamente doado café aos dois lados do conflito, embora aparentemente incoerente, seguia a lógica da política externa do país no período. Esta aparente contradição, segundo Ismara, se explica pela conduta internacional pragmática do governo Vargas durante os anos 1930. De acordo com a pesquisadora, dentro de um contexto de duas importantes potências mundiais – Alemanha e Estados Unidos –, o Brasil optou por uma “equidistância pragmática” que o permitiu dialogar com ambos os lados e obter vantagens disto. “Esse jogo com os dois sistemas de poder possibilita uma margem de manobra e permite uma, ainda que limitada, experiência de autonomia do Brasil no sistema internacional”, afirma.
É dentro deste contexto que se deve entender a política do governo Vargas durante o conflito espanhol. “Há uma preocupação em manter a neutralidade, que era a política dos Estados Unidos”, relata Ismara. “Internamente, havia muitos setores que defendiam a quebra de neutralidade e o reconhecimento do lado franquista, mas Vargas será muito pragmático e mantém a neutralidade e as relações com os republicanos”, diz. Desta forma, a relação com o lado franquista se dava de maneira escamoteada. “Franco estava mais próximo ao Estado Novo do que a República [espanhola]”, pondera Carlos Sixirei Paredes. “Entre militares como [Eurico Gaspar] Dutra e [Pedro Aurélio de] Góes Monteiro a simpatia por Franco era muito evidente”, aponta.
Com o fim da Guerra Civil espanhola em 1939, o Brasil e grande parte da comunidade internacional reconhecem a ditadura de Franco. No entanto, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a posterior derrota do Eixo – com quem a ditadura franquista mantinha uma relação de proximidade – isolaram a Espanha nas décadas seguintes. Com o fim do Estado Novo no Brasil em 1945, também as relações entre os dois países esfriam.
Franco: a pátria como fonte de enriquecimento
Ao conquistar o poder na Espanha, Franco se eleva à condição de chefe supremo do Estado, concentrando em suas mãos os poderes Executivo, Judicial e Legislativo. Ainda durante a guerra, ele já se havia autodenominado “Generalíssimo dos Exércitos”. Em seu governo, Franco se apresenta como “Caudilho da Espanha e da Cruzada” e se declara chefe de Estado vitalício, juntando também a função de presidente de Governo. O ditador ainda acumulava o cargo de presidente do partido único de seu regime, a Falange Espanhola Tradicionalista e das Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista.
Em 1947, quando se promulga uma das “leis fundamentais” do franquismo, que define que a Espanha seria um reino, “ficou claro que seria um reino sem rei”, explica Pelai Pagès. Com a lei, o caudilho definiu que ele próprio escolheria seu sucessor, o que não aconteceria até sua própria morte e com a nomeação do rei Juan Carlos I, que, após um acordo com a família real no exterior, havia voltado jovem para se educar no país.
A imagem construída por Franco e seus apoiadores, durante a guerra e ao longo dos 40 anos de sua ditadura, o colocava como um caudilho, chefe absoluto e líder protetor da pátria. Ao lado desta imagem convivia – e, em certa medida, ainda convive – a de homem íntegro, austero e incorruptível. A pesquisa realizada por Ángel Viñas sobre a fortuna do general choca-se com isto. “É um comportamento de Franco contrário à imagem do ditador que se tem até agora na Espanha”, avalia o autor.
Das revelações trazidas por Viñas, chama atenção a rapidez com que o ditador se fez rico. Segundo o pesquisador, não há indícios de que Franco ou sua família tivessem grandes quantidades de dinheiro antes da guerra, inclusive porque, como militar, recebia um salário que pode ser considerado modesto. Ao liderar a tentativa de golpe em julho de 1936, seu salário, assim como o de outros militares sublevados, é cortado pelo governo republicano. Ou seja, naquele momento o general, inclusive, perde sua única fonte oficial de renda.
O dinheiro angariado com a venda de café teria sido uma fonte relevante para a construção da fortuna do ditador, mas não a única. “O canal mais importante que ele utilizou para se enriquecer foram as doações feitas por espanhóis, e provavelmente por estrangeiros, à causa nacionalista”, explica Viñas. “No entanto, desde pelo menos outubro de 1936, ele foi passando as doações às suas contas pessoais.”
Ángel Viñas traz uma interessante ponderação quando perguntado sobre se Franco teria cometido alguma ilegalidade com tal enriquecimento. “Franco era a fonte do Direito, então ele não podia ir contra o Direito, que ele próprio criava.” Como chefe supremo e detentor dos diversos Poderes, suas palavras e própria conduta tinham valor de normal legal. Franco era a lei e o próprio Estado.
O franquismo, ainda hoje
Uma transição política à democracia que privilegiou não apurar os acontecimentos da Guerra Civil (1936-1939) e da ditadura franquista (1939-1975) deixou esses traumáticos períodos como uma ferida aberta para a sociedade espanhola e que até hoje, em muitas maneiras, continua dividindo o país. Um dado chocante sobre este passado – e também da violência do período – é que a Espanha seria o segundo país do mundo com maior número de pessoas desaparecidas, atrás apenas do Camboja. Seriam mais de 114 mil, segundo a associação espanhola Juízes pela Democracia.
É neste contexto que o pesquisador Ángel Viñas se dedica a estudar a ditadura franquista a partir de documentação da época e a desconstruir seus mitos que ainda persistem. Questionado sobre se sua obra teria recebido muitas contestações, o autor é direto: “tudo o que confrontei foram insultos”.
O apoio social que até hoje tem o franquismo também se reflete dentro da produção acadêmica sobre o período. “Desde 1975, vemos uma espécie de choque entre duas maneiras de entender o passado. Uma parte que é tributária dos mitos franquistas, ainda que modernizados, e outra que é crítica e que vai recuperando a história dos 40 anos obscuros”, analisa Viñas. “Esse é o cisma fundamental que divide os que escrevemos sobre história contemporânea na Espanha”, conclui.