Era óbvio que essa direita, após ter derrubado um governo de esquerda (mesmo que extremamente moderado) jamais organizaria eleições democráticas para dar à esquerda a chance de retornar ao governo. Essas eleições, como sempre ocorre em meio a um golpe de Estado, serviriam para dar uma impressão de legitimidade ao golpe, colocando os candidatos da direita golpista nos principais cargos sob a cobertura do “voto popular”.
Para que isso fosse possível, a direita deveria tirar todos os obstáculos restantes de seu caminho. O principal deles era o ex-presidente Lula, perseguido duramente pelas instituições nas mãos dos golpistas para que não concorresse a um novo mandato. Lula era, devido às condições materiais da luta política na atual conjuntura, a principal pedra no sapato do golpe: representava a insatisfação popular com o regime neoliberal golpista, e em torno dele se formou um amplo movimento popular com uma tendência crescente para a radicalização e o enfrentamento com a direita e, consequentemente, com a burguesia. O que menos importava era o caráter moderado e conciliador do indivíduo e de seu partido, porque a situação os obrigou a levar adiante um discurso e uma política de confronto com a direita, empurrados pelo movimento de massas, ainda incipiente.
A burguesia, sem a menor intenção de conciliar com um partido de ampla base operária, utilizou-se de todas as suas armas para impedir que Lula se candidatasse. Processos farsescos, julgamentos fraudulentos, perseguições políticas arbitrárias, violentos ataques de grupos fascistas, repressão policial, prisões ilegais contra uma grande variedade de militantes e organizações de esquerda. Até que, finalmente, ela conseguiu prender o ex-presidente metalúrgico.
Isso se deveu, claro, pela perseguição agressiva que a direita realizou, através de todas as suas instituições. Mas, também, à falta de iniciativa da esquerda de conjunto. Rachas entre partidos de diferentes ideologias de esquerda impediram uma unidade de ação, por um lado. Por outro, o próprio caráter limitado do PT, controlado por uma burocracia que acredita cegamente nas instituições burguesas, fez com que o partido não apostasse todas as suas fichas na mobilização popular, mesmo tendo mais de dois milhões de filiados, a maior militância partidária do país, e apoiado fielmente por algumas das maiores organizações de massa do mundo, como a CUT e o MST.
A mobilização em torno de Lula era a mais acertada no momento, uma vez que grandes parcelas da população, especialmente das classes populares, apoiavam sua candidatura, e que ela refletia uma vontade de lutar contra o golpe de Estado, contra a política neoliberal, contra a direita e, em última instância, contra o Estado burguês e o imperialismo. Lula era o elemento que catalizava toda a luta democrática do povo, que, inclusive, poderia evoluir para uma mobilização radical e gerar uma crise sem precedentes nos alicerces do regime político decadente.
Contra a vontade popular – reconhecida pelos próprios institutos de pesquisa da burguesia, que colocavam o petista isolado à frente de todos seus concorrentes à presidência, com 40% de intenções de voto – o PT, organização dominante na esquerda brasileira, decidiu capitular frente à gigantesca pressão da burguesia e desistir da candidatura de Lula, esquecido no cárcere de Curitiba.
Chegada a corrida eleitoral, a realidade material foi abolida pela quase totalidade da esquerda, embreagada com o pleito mais controlado de toda a história pela burguesia. O período de campanha foi o menor de todos, a cassação de candidaturas atingiu mais de 2 mil pessoas, o tempo de televisão, mínimo; a propaganda direitista da imprensa, extrema; a Justiça estipulou multas pelos mais ridículos motivos, a censura comeu solta na imprensa, nas redes sociais e no Judiciário, sedes de comitês eleitorais e de partidos de esquerda foram invadidas em vários estados pela polícia, militantes foram atacados pelas forças de repressão e por elementos fascistas... Enfim, a lista de exemplos que comprovam a fraudulência deste processo eleitoral é quilométrica.
Mesmo sofrendo toda essa onda de golpes, a esquerda não largou o vício eleitoreiro. O PT acreditava na transferência instantânea de votos de Lula para o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sem qualquer ligação verdadeira com a classe trabalhadora. O PSOL, que se diz diferente do PT, foi além, e seu candidato, o líder do MTST Guilherme Boulos, ainda deve estar achando que será presidente. O PSTU, sectário e, na prática, aliado da direita, ganhou um destaque maior do que de costume pela imprensa, esta com o intuito de disfarçar a ditadura desse processo, transmitindo a falsa sensação de democracia e pluralidade de correntes políticas.
No último domingo, veio o balde de água fria. Embora Haddad tenha passado para o segundo turno, os resultados das eleições para o Legislativo e os governos estaduais comprovaram – de maneira surpreendente até mesmo para aqueles que não nutriam qualquer ilusão eleitoral – o tamanho da fraude.
Quatro exemplos: para o governo do Rio de Janeiro, foi em primeiro lugar ao segundo turno um candidato desconhecido, da extrema-direita, que estava em quarto nas pesquisas divulgadas no dia anterior e subiu, sem qualquer explicação, 31 pontos percentuais. Em Minas, houve dois casos estarrecedores: o terceiro nas pesquisas, um desconhecido da extrema-direita neoliberal, saltou 24 pontos percentuais e também passou em primeiro lugar para o segundo turno, enquanto que, no Senado, Dilma Rousseff liderou todas as pesquisas com folga e terminou na quarta colocação. Já para o Senado de São Paulo, o principal candidato petista e político de carreira (com eleitores até mesmo dentre a direita) foi ultrapassado de última hora por dois concorrentes, após liderar todas as pesquisas com certa folga, e não se elegeu.
Depois da derrota acachapante – e fraudada – da esquerda nas eleições gerais, ainda restou a disputa pela presidência. Haddad conseguiu chegar ao segundo turno contra o candidato fascista Jair Bolsonaro, que quase venceu ainda no primeiro turno. Entretanto, o defensor da ditadura militar, ao contrário do que mostram as pesquisas e o resultado farsescos das eleições, não tem um suporte de massas, mas em grande medida artificial. As ruas ainda pertencem à esquerda, embora esta tenha aberto mão desse elemento decisivo de luta em prol da crença eleitoral.
Com a polarização da sociedade, o segundo turno – na propaganda da imprensa, que gostaria de um candidato de “centro”, ou seja, neoliberal (especialmente Geraldo Alckmin) – se tornou, falsamente, uma luta de extremos. No discurso da esquerda, uma luta da democracia contra o fascismo. Juntaram-se ao PT, em apoio a Haddad, partidos fisiológicos da pseudoesquerda (como PDT e PSB), bem como PSOL e PCB (que tem adotado uma política cada vez mais a reboque do PSOL, confusa e pequeno-burguesa). Parece ser uma frente ampla de esquerda, inútil na prática, uma vez que tem finalidades exclusivamente eleitorais e não de um enfrentamento real com a direita.
Além disso, buscando alcançar os eleitores indecisos, o PT vem adotando uma postura cada vez mais capituladora (contrária aos interesses e às aspirações de sua base). Dirigentes carreiristas que ocupam cargos importantes graças à aliança com a direita pedem que o partido abra mão de uma vez por todas de seu programa tradicional, a fim de conquistar a confiança do mercado e de parcelas da direita. Haddad também já abandonou a proposta de estabelecer uma Assembleia Constituinte, que era uma das únicas propostas progressistas de sua candidatura. Abandonou também a cor vermelha que caracteriza seu partido. Até mesmo ativistas do PT vêm defendendo que seu candidato utilize um discurso de direita para abocanhar eleitores de classe média antiesquerda, atacando a Venezuela, por exemplo.
Tudo isso, segundo a mente deformada de tais parcelas da esquerda, seria necessário para “derrotar o fascismo”. Ou seja, se quer acabar com o fascismo alimentando o discurso fascista. O que o pensamento de caráter pequeno-burguês de tal esquerda não permite que ela perceba é que o fascismo não é um fenômeno eleitoral e que as eleições são manipuladas pela burguesia, que gera o fascismo. Portanto, não é votando contra um candidato fascista que extirparemos o fascismo do país. Isso só será feito com a mobilização classista das massas populares, justamente o que tal esquerda se recusa a organizar.
Parece que o único que podemos fazer é esperar até que a esquerda volte à sobriedade pós-eleições para que, munida de uma política concreta de enfrentamento com a direita e a burguesia, e com independência de classe, abra um novo período de luta, combativo e realista, que traga perspectivas melhores para o povo e os trabalhadores na batalha por sua emancipação social.