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Sexta, 24 Junho 2016 19:43 Última modificação em Terça, 28 Junho 2016 17:06

Uma paixão olímpica

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País: Brasil / Batalha de ideias / Fonte: Diário Liberdade

[João Guilherme Alvares de Farias] No último dia 20, a onça-pintada de nome Juma foi baleada e morta por um soldado após ser utilizada numa atividade relacionada às Olimpíadas, evento que ocorrerá logo mais no Brasil [1].

Em Oaxaca, no México, os últimos dias foram marcados por extrema repressão policial contra trabalhadoras e trabalhadores, resultando, até agora, em 6 mortos e mais de 100 feridos.

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A classe trabalhadora, que é revolucionária, passou, ao longo dos últimos dois séculos, por um forte e constante processo de legalização. Esse processo de legalização permitiu ao Estado mantê-la sob seu controle. Regula-se a greve, os atos de rua, as “liberdades” de pensamento e demais manifestações. Mas, uma vez ultrapassado o limite imposto, isto é, positivado, o Estado intervém, literalmente, disparando ou apunhalando, fazendo episódios como o massacre fictício da Escadaria de Odessa, de Sergei Eisenstein, parecer insignificante.

Isso basta para dizermos que a normatização ou a legalização de conquistas sociais sob o título de “direitos” é uma falsa vitória e por isso não merece comemoração.

Mas, o que tem a ver isso com a morte da onça Juma? Nada, ou tudo. Trata-se de uma metáfora, ou, mais humildemente, de uma imediata analogia, construída a partir do conto de Honoré Balzac, este incrível escritor burguês que participava diretamente do ambiente social sobre o qual escrevia, como registrou Lukács [2]. Estamos falando da narrativa “Uma paixão no deserto”.

Neste pequeno escrito, as personagens de Balzac relatam a história de um soldado francês, ex-combatente, que, ao fugir, vê-se perdido num deserto do Norte do continente Africano. Abrigado numa gruta, nas proximidades de um pequeno oásis, descobre-se na companhia de uma pantera. Enquanto esta mantem-se tranquila, o soldado sente o receio e o medo aflorar na pele.

Porém, passado esse primeiro contato aterrador, conforme passa o tempo, uma espécie de amizade surge entre o soldado e a pantera. Carinhosa, a pantera recebe o nome de Mimosa. Essa atitude de absoluta passividade do animal, todavia, não é suficiente para tirar a inquietação do soldado, que alimenta certa desconfiança do comportamento do bicho.

Então, certa noite, enquanto dormiam, devido aos seus movimentos bruscos o felino acaba por ferir o soldado, que, imediatamente, apunha-la o animal, matando-o no mesmo instante.

Juma era uma onça-pintada que estava em cativeiro sob o cuidado do Exército e enquanto manteve sua “vontade” submetida ao controle daqueles que dela cuidavam, recebeu toda proteção e carinho; era a mascote do 1º Batalhão de Infantaria da Selva (BIS).

Mimosa era uma personagem fictícia, claro, mas, além disso, uma pantera que abdicou de seu instinto selvagem pela confiança, companhia e pelos cuidados e as brincadeiras do soldado francês, seu domador. Mas, tal como ocorreu com Mimosa, num momento de imaginária rebeldia, o soldado não hesitou em disparar contra Juma, que teve o mesmo fim.

O exemplo de Juma e a ficção balzaquiana parecem ser ambos muito didáticos.

Encarado apenas como uma mediação, o direito é o instrumento pelo qual a classe trabalhadora submete-se ao seu domador: o Estado “apropriado” pela burguesia.

Por meio das formas sociais e históricas que se reproduzem objetiva e ideologicamente, perpetuam-se determinadas relações societais e com elas as desigualdades e os antagonismos de classe. Nesse processo, a classe trabalhadora, agora incorporada ou absorvida pelo direito, está em pé de igualdade com a burguesia, recaindo sobre ambas os mesmos deveras e os mesmos direitos. A plena igualdade reina, ainda que formalmente. Mas a classe trabalhadora não pode jamais ousar levantar-se.

O latifúndio improdutivo pode ser objeto de reforma agrária (184 da CF/88). Mas ela não ocorre ou muito lentamente. Enquanto isso, cerca de 200 mil camponeses [3] não têm terra para trabalhar. Se esses camponeses permanecem inertes e morrem de fome, tudo bem, afinal, o contrato está sendo respeitado. Por outro lado, se organizam-se num movimento como o dos Trabalhadores Sem Terra (MST), e promovem uma ocupação, estão quebrando as cláusulas de submissão, e precisam ser controlados. Daí surgem os inúmeros Eldorados dos Carajás: assassinato atrás de assassinato.

A copa do mundo e as olimpíadas também deixam seu rastro de vítimas no país. Não foi apenas Juma. Mais de 30 mil pessoas foram retiradas de suas casas [4]. Mais de 20 pessoas já morreram trabalhando nas obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 [5]. Claro, tudo juridicamente justificado. Assim, não há abuso por parte do Estado. O resultado deve ser, então, a manutenção da passividade dos setores afetados.

Enquanto o Estado burguês regula a nossa vida, devemos a ele obediência. Se ousarmos nos levantar, contestando tais ações reguladas e por ele promovidas, então merecemos o punhal.

Se, juridicamente, não há abuso por parte do Estado nas milhares de desapropriações, não pode haver abuso por parte da classe trabalhadora. Em termos concretos, se há resistência física (ocupação) pela não demolição, por exemplo, do Museu do Índio, então o Estado está sob agressão, ataque, e pode, portanto, revidar.

A legalidade é tão cruel que no último dia 17 o governo do Rio de Janeiro decretou estado de calamidade, informando a preferência no repasse de verbas para obras destinadas aos Jogos Olímpicos em detrimento dos serviços públicos, como saúde e educação.

Assim como o deserto no conto balzaquiano não passa de uma metáfora para designar algo relacionado à fragilidade da vida, quase como um desafio sobre-humano de manter-se a salvo, a Olimpíada 2016 tem o mesmo significado para inúmeras brasileiras e inúmeros brasileiros: um risco à sobrevivência.

A relação que se estabelece entre Mimosa e o soldado não equipare-se apenas com o ocorrido com Juma e seu facínora, mas, ampliada, metafórica e analogamente, na relação estabelecida entre a classe trabalhadora e o Estado burguês.

 

João Guilherme é militante do PCB. Estudante de Direito e pesquisador da PUC-SP. Coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital/USP.

NOTAS:

[1] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/21/politica/1466538563_267969.html

[2] http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/9729/1/2011_MariaBragaBarbosa.pdf

[3] http://www.mst.org.br/2015/03/03/relatorio-mostra-aumento-na-concentracao-de-terras-do-brasil.html

[4] http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2012/04/19/copa-e-olimpiada-devem-desalojar-72-mil-familias-no-rio-de-janeiro-segundo-dossie.htm

[5] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/04/onze-operarios-morreram-em-obras-olimpicas-no-rio-diz-relatorio.html / http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/03/obras-nos-estadios-da-copa-de-2014-ja-causaram-morte-de-oito-operarios.html

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