Assim como as demais manifestações culturais negras foi enormemente perseguida pela classe dominante e por todas as forças repressivas do Estado racista no Brasil que punia os “capoeiras” com castigos corporais (trezentas chibatadas) e reclusão de um a três anos. Entre a ginga, os golpes violentos de navalha e as canções a capoeira foi ensinada de geração em geração e resistiu durante séculos assim como o instinto de rebeldia de todos os negros que se insurgiram contra o racismo e a escravidão. Como uma contribuição para recuperar a história de luta e resistência dos negros, o Esquerda Diário entrevistou Mestre Graúna, cordão branco de capoeira, integrante do Grupo Fonte do Gravatá e da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.
Esquerda Diário: Mestre Graúna, você é integrante do grupo de capoeira Fonte do Gravatá, poderia se apresentar e nos falar um pouco sobre este grupo e que atividades fazem?
Mestre Graúna: Eu sou integrante do grupo Fonte do Gravatá, desde 1984 e fiz todas as minhas graduações na capoeira, porém vim de uma outra academia, da Dois de Ouro do mestre Grande e ingressei na Fonte do Gravatá em 1984. Este grupo é um grupo tradicional de capoeira em São Paulo, ele vem da linhagem do mestre Bimba pois meu mestre se formou com um de seus discípulos, mestre Onça. O padrinho da Fonte do Gravatá foi mestre Acordeon, parceiro inseparável de mestre Onça (que como disse também foi formado pelo mestre Bimba), mas na Fonte do Gravatá também se incluiram outros mestres que enriqueceram bastante a arte de lá que foi o mestre Kenura, o mestre Miguel que hoje é o presidente e fundador do grupo Cativeiro.
Mestre Kenura, depois de muitos anos na Fonte do Gravatá fundou seu próprio grupo chamado Águas de Menino, esses mestres fizeram toda tradição e toda trajetória da Fonte do Gravatá que hoje procuramos conservar porque é uma história de muita riqueza cultural e ainda hoje trabalhamos na mesma filosofia.
ED: Pode nos comentar um pouco sobre a importância da capoeira como parte da cultura e resistência negra?
Mestre Graúna: A importância da capoeira para a resistência dos negros é que tanto no passado mas também no presente os mestres tinham consciência de libertar os negros através da capoeira para conquistar sua independência. Essa grande independência cultural ajudou os povos mais oprimidos. Pelas necessidades os capoeiristas tiveram que se organizar em maltas e em alguns casos até mesmo se sujeitar a contratações políticas. A partir do momento que o negro tomou essa consciência, nós tivemos grandes mestres que se tornaram ícones como é o caso de mestre Bimba, que ajudou a que a capoeira se tornasse um esporte reconhecido apesar das perseguições que sofremos na história. Ainda hoje somos perseguidos de uma outra forma, pois o hoje que o CREF (Conselho Regional de Educação Física) e o CONFEF ( Conselho Federal de Educação Física) ficam em cima de nós, tentando nos obrigar a ter formação acadêmica ou curso de Educação Física para poder dar aula. Mesmo assim a capoeira tem resistido bastante hoje com uma capoeira mais jovem e a luta continua, pois nós defendemos tudo que exista para recuperar nossas raízes. A capoeira é educativa sim, ela ainda recupera pessoas, ela ainda tira a molecada da rua, ela dá uma opção de lazer para aqueles que não tem condições financeiras, para aqueles que tem menos oportunidades e tem formado excelentes professores.
Nós mestres nos preocupamos bastante em nos atualizar dentro de uma instrução para saber lidar com o corpo de cada um para não lesionar os alunos e mantemos viva a capoeira que tem uma grande importância para a cultura negra no nosso pais.
ED: Recentemente realizaram uma oficina de berimbau, poderia nos falar um pouco sobre este instrumento e os tipos de toques usados na capoeira?
Sim, nós fizemos uma oficina de fabricação de berimbaus. O berimbau se introduziu na capoeira mas poderia ter sido um outro tipo de instrumento. Nem nós mesmos nem os historiadores mais velhos sabem informar exatamente o momento em que o berimbau foi introduzido porque antigamente as rodas de capoeira eram batidas até mesmo na palma da mão, mas desde que entrou na capoeira o berimbau passou a ter uma grande importância na capoeira. É um instrumento que nos dá duas notas e meia. Nas músicas de capoeira o capoeirista tem que saber levar a música, ele tem uma certa limitação, é praticamente um instrumento de percussão pois tem uma corda só esticada através da verga, da madeira chamada biriba, da cabaça e é composto também da varetinha e o dobrão. O berimbau tem vários toques, cada toque para um tipo especifico de jogo, o mestre Bimba criou vários, embora mestre Bimba tenha sido um grande angoleiro ele criou a capoeria regional baiana e criou os toques para a capoeira regional baiana, ele criou o toque de São Bento Grande de Regional, toque de Banguela ou Benguela.
Mestre Camisa revolucionou muito a capoeira através desse toque e vários outros toques como Santa Maria de Regional, o jogo de facão, o toque de Idalina, o toque de Cavalaria que era um toque que os capoeiristas tocavam quando a cavalaria estava chegando, esse toque simboliza realmente o compasso do cavalo é um toque de alerta, criou o toque de Iuna e o toque de Amazonas. O toque de Iuna, só tocavam aqueles mestres bem formados, os demais não tocavam, então são coisas da época, hoje em dia já se criaram adaptações para outras gerações jogarem porque precisavam aprender e a Iuna é feito com movimentos acrobáticos, o jogo de balão, cintura desprezada.
No jogo de Iuna é necessário que se faça pelo menos três movimentos de cintura desprezada. Já o Amazonas é considerado o hino da capoeira, outros capoeiristas consideram o toque de Iuna e geralmente em velórios de capoeiristas que morrem se toca o Amazonas. Já o toque de Angola é um toque que conta histórias.
Angola trás em seu canto contos da história, trás a ladainha para você contar a sua história, o toque de Angola trás as quadras, São Bento Grande de Regional também tem as quadras , tem a chula, que são cantos corridos. Temos então toda uma tradição do berimbau e hoje são três berimbaus que são usados nas rodas que foram sendo introduzidos aos poucos, o Gunga, o médio e o viola, antigamente o Gunga era chamado de berra boi que é o que comanda o toque principal, que dá o tom do toque que tem que ser tocado, o segundo berimbau que vai no meio é o berimbau médio que faz o contra-toque do primeiro toque, ou seja toca invertido e o terceiro berimbau é o viola , que é o pequenininho que faz a dobra em cima dos dois, que faz as variações, então isso tudo incrementa a harmonia do berimbau, assim como nas religiões afro-brasileiras tem o Rum (atabaque maior de tom grave), o Rumpi (atabaque médio) e Iê (atabaque menor de tom agudo) que são os três atabaques introduziram talvez através desse pensamento os três berimbaus que deu uma tonância muito boa pra capoeira em matéria de música.
ED: Poderia nos falar um pouco sobre a história da capoeira em São Paulo?
A história da capoeira em São Paulo é bem antiga, nós tínhamos antigamente o samba da tiririca, a própria escola de samba Nenê da vila Matilde surgiu das rodas de capoeira que se criou que em meados dos anos 50 e 60. A Praça da República começou a ter rodas de capoeira já nos anos 50 com grandes mestres, alguns ainda vivos, havia um vendedor de berimbaus chamado mestre Tomás do berimbau já falecido e os capoeiristas se reuniam todos lá e então começavam a roda da Praça da República que é uma roda tradicional até hoje que tentaram nos tirar através da politica suja do governo que não nos quer na rua e por isso continuamos lutando e lutando. A capoeira tradicional de SP dizem que foi a mais técnica porque como São Paulo recebeu capoeiristas de diversos estados trouxe uma personalidade e um estilo próprio de ser jogada, sendo considerada uma das mais técnicas, montou-se também uma Federação Paulista de Capoeira em 1974 que dava oportunidade dos capoeiristas disputarem campeonatos, das academias se filiarem, a Fonte do Gravatá foi uma das primeiras a se filiar. Tocava-se na roda apenas Angola e São Bento grande de Angola, eram os únicos toques da capoeira mais antiga de São Paulo, temos mestre percussores como mestre Joel, mestre Ananias, Mestre Brasinha, mestre Suassuna antigo mestre Silvestre, mestre Limão são tantos que falha a memoria pra falar de todos.
Hoje eu digo que nós estamos na quarta geração de capoeiristas de São Paulo, eu faço parte da terceira geração, depois que mestre Bimba instituiu a capoeira como esporte e instituiu todos aqueles toques, porque mestre Bimba era um guerreiro, era o único capoeirista na época que desafiava várias artes marciais, ganhando inclusive do próprio Grace em cima do ringue, bateu Grace com a capoeira que ele inventou que é a capoeira regional baiana, mas assim na opinião geral capoeira é capoeira, se ela libertou os escravos ela não se formou sempre Angola, até mesmo porque os movimentos de angola são lentos e não bateria um senhor de engenho na hora da precisão então a capoeira sempre teve sua funcionalidade violenta como luta e disfarçada em dança pra não ser oprimida e até hoje é disfarçada por que precisamos entrar em colégios, em escolas mas a gente sabe que se precisar ela vai funcionar. E depois da introdução desses toques de capoeira na República hoje já se toca lá sim outros toques criados por mestre Bimba mas no momento parece que perdeu um pouquinho aquela tradição, o toque de por a laranja no chão, o toque de Iuna, tá voltando a tradição antiga.
ED: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa sobre a capoeira e a cultura negra ou algo de seu interesse?
Além de uma manifestação cultural e de resistência dos negros a capoeira hoje tem se tornado um tanto política, inclusive há uma grande movimentação dos capoeiristas pra eleger um dos nossos, um capoeirista, que é o mestre Brasília, pois isso é parte de defender nossa cultura.