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Sexta, 28 Outubro 2016 15:34 Última modificação em Segunda, 31 Outubro 2016 16:23

Salomão Ximenes: ‘O objetivo do governo é desmobilizar por todos os meios o movimento de ocupação’

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País: Brasil / Reportagens, Língua/Educaçom / Fonte: EPSJV

[Maíra Mathias] A juventude brasileira voltou ao primeiro plano de cena política em outubro. Reagindo contra a reforma do ensino médio apresentada pelo governo federal à sociedade como fato consumado através da Medida Provisória 746 e, também contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 que congela os gastos com políticas públicas por 20 anos, os estudantes secundaristas ocuparam suas escolas. Disparadas no início do mês, as ocupações se espalharam rapidamente por todo o país, que já tem mais de mil unidades ocupadas. Ao contrário da primeira leva de ocupações, desta vez os Institutos Federais também aderiram ao movimento. E foi exatamente pelas ocupações dos IFs – vinculados à Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC) – que a reação do governo começou. Nesta entrevista, professor da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, analisa ponto a ponto as movimentações que tentam, de Brasília, dar um ultimato às ocupações. O especialista em Direito de Estado e membro da Rede Escola Pública e Universidade também esclarece por que o direito à educação, argumento usado pelo governo contra as ocupações, não exclui o direito ao protesto.

Há uma semana, no dia 19, a Setec/MEC enviou um ofício aos reitores dos Institutos Federais pedindo que informassem sobre os campi ocupados. O documento falava em “proceder, se for o caso” à identificação dos ocupantes, dava um prazo de cinco dias para os reitores. O que o MEC pode fazer em posse desses nomes? Existe precedente de um comportamento como esse?

Não dessa forma, com tanta evidência. O que está acontecendo é uma radicalização da posição do MEC no sentido de usar todas as armas de que dispõe para a desmobilização das ocupações no interesse de ver implementada a sua Medida Provisória 746. É isso. Do ponto de vista estritamente jurídico, o objetivo é a individualização das condutas para efeito de pedido de reintegração de posse, se for o caso. Em seguida parece que os diretores dos institutos, pelo menos a maioria, decidiu não encaminhar as informações. Mas o grande objetivo é criar um clima de medo entre os estudantes, um clima de perseguição porque levar isso às últimas consequências seria uma maluquice. Imagina abrir procedimento administrativo, no âmbito de cada uma das instituições, para punição de cada um dos estudantes e professores que estão envolvidos nas ocupações pelo Brasil. Seria a maior perseguição política e jurídica já registrada na educação básica. Por isso, ainda vejo mais uma atitude de desmobilização do que propriamente o interesse em chegar às últimas consequências. Pode ser até que chegue e por isso cabe o alerta, mas o mais importante hoje é a sinalização de que as ocupações são vistas pelo MEC como infrações administrativas e passíveis de responsabilização individual.

O ofício da Setec repercutiu negativamente na imprensa e nas redes sociais, fazendo com que o MEC emitisse uma nota oficial e o próprio ministro da Educação, Mendonça Filho, concedesse uma coletiva de imprensa no dia 20. Nota e entrevista lançam mão do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, marcado para os dias 5 e 6 de novembro, para dar um ultimato: se as unidades não forem desocupadas até 31 de outubro, o Enem não será realizado. Ainda nesse dia, a Advocacia Geral da União (AGU) informou que pode cobrar dos ‘responsáveis’ o valor pago por cada nova prova do Enem aplicada. O que depreender dessa posição oficial?

A ameaça de cobrar pelo Enem tem o mesmo espírito do ofício de individualização de conduta: uma postura de radicalização do MEC, aparentemente escorada pela AGU. E essa articulação também me parece uma novidade preocupante. Na verdade, até que viesse a público a posição da AGU eu ainda não tinha percebido que podia se tratar de uma estratégia judicial articulada. Há uma elevação de tom no sentido e na articulação da repressão. No Direito isso chama estratégia de litígio. Ou seja, minha hipótese é que no âmbito da AGU, não é possível saber exatamente em que instância da instituição, montou-se uma estratégia de litígio contra os estudantes assim como os grandes escritórios fazem quando recebem causas difíceis de clientes. Reúnem os advogados com a assessoria de imprensa, com os órgãos envolvidos, e montam uma estratégia de litígio para ganhar a disputa. E isso não necessariamente acontece pela via judicial tradicional. Pode acontecer também pela mobilização da opinião pública, pela abertura de conflitos como esse que nós estamos vendo agora. Ou seja, o estímulo a conflitos dentro da escola, no âmbito da comunidade escolar. Não tenho notícia de uma estratégia de litígio tão amplamente articulada em nível nacional contra estudantes ou contra movimentos de resistência nos últimos anos na área da educação. Caso se confirme isso é um grande absurdo porque os advogados da União, em tese, têm uma função de Estado que exige uma postura de independência.

A AGU não precisa necessariamente se alinhar à posição do governo?

Não necessariamente. A AGU é uma instituição complexa que reúne os órgãos da advocacia pública da União. Além de atuar nas causas judiciais envolvendo a União, a AGU tem uma importante missão consultiva, de orientação jurídica aos chefes de órgãos e ministérios do Poder Executivo, e estabelecimento de procedimentos de atuação no âmbito da administração pública, visando assegurar os direitos fundamentais e o direito público nesses procedimentos. Então não é natural que a AGU deva aderir às posições radicalizadas de ministros, presidentes. Não é natural. Ela não existe para isso. Existe para funcionar como uma agência de garantia de legalidade no âmbito da administração pública federal em todos os sentidos, não só no sentido que o governo quer, mas no sentido que a Constituição e os direitos fundamentais exigem. É muito condenável nesse caso o fato de a AGU ter abandonado todo o referencial de proteção aos direitos fundamentais e ter passado a atuar unicamente em favor de uma das posições radicalizadas no conflito. Vemos isso tanto no posicionamento sobre o Enem como no documento que a AGU apresentou na ADPF 412 [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, movida pelo PSOL contra a política do governo paulista de desocupação escolar], no qual basicamente repete a tese da Procuradoria de São Paulo em defesa da abusiva ideia de autotutela contra ocupações escolares.

Esse ponto de assegurar direitos fundamentais, o MEC na nota oficial diz reconhecer o direito de protesto, mas fala que este direito não é mais importante do que direito a educação...

É uma visão rasa. A falsa premissa do MEC é que o protesto não realiza o direito à educação. Nesse caso o que acontece é que existe uma Medida Provisória já vigente, em implementação. Aparentemente o debate na sociedade sobre essa Medida está interditado, a norma já está colocada. Ou seja, o debate acontecerá – se acontecer – de forma sumária e rasa no Congresso Nacional, porque é assim que tramita uma Medida Provisória, e enquanto o Congresso analisa ela já gera efeitos jurídicos e práticos. E num contexto como esse a ideia do protesto, da resistência civil se coloca como única alternativa razoável. Inclusive para abrir o tipo de discussão que nós estamos fazendo agora sobre se a Medida é a mais adequada, para que a MP possa receber as críticas da sociedade que ela não recebeu em função de ter sido editada de forma unilateral. 

Sempre que está em jogo o direito de protesto, direito de greve, direito de manifestação, o exercício desse direito se coloca num contexto de quebra de rotinas. É a mesma argumentação que se utiliza, por exemplo, colocando de um lado protesto e de outro a liberdade de ir e vir. Em muitas situações o direito ao protesto coloca uma necessidade de quebra da rotina, não no exercício do direito, mas do funcionamento cotidiano de determinadas instituições como condição para se avançar na garantia do próprio direito. É o caso das greves, por exemplo. A pauta das greves na educação gira em termos de melhorias de condições salariais, condições de trabalho nas escolas. E isso está diretamente relacionado à possibilidade do exercício do direito à educação. Então não se pode fazer essa leitura binária. Um não exclui o outro.

Ainda na linha de argumentação, o MEC emenda a questão da equivalência dos direitos com a realização do Enem...

A questão do Enem é isso também, sua aplicação pode ser afetada pela quebra de rotinas que caracteriza o direito ao protesto. A única saída razoável para esses conflitos de interesses e direitos é a gramática dos direitos fundamentais. Porque, ainda na linha do argumento do MEC sobre a necessidade de assegurar o direito a educação, o caso do Enem seria o direito a progredir nos estudos, ingressar no ensino superior, por exemplo. Mas ainda que se leve em conta isso – a ideia de que eventualmente as ocupações podem afetar o exercício desse direito caso nada seja feito –, o que a gramática dos direitos fundamentais diz é que qualquer solução administrativa ou judicial deve buscar resolver o conflito preservando o que é essencial no exercício de cada um dos direitos em questão. O que não é aceitável, e é autoritário do ponto de vista jurídico, é que diante de um conflito entre interesses se decida suspender em absoluto o exercício de um dos direitos em nome do outro.

Por exemplo, o tipo de solução de entrar em algum acordo com os movimentos nas instituições ocupadas para que o Enem seja aplicado, sem prejuízo grave à autonomia do próprio movimento quanto ao processo de ocupação, é muito mais adequada inclusive do ponto de vista jurídico. O problema é que essa visão baseada na ideia de que o Estado deve assegurar ao máximo o exercício de cada um dos direitos em conflito também foi abandonada pela AGU. Aparentemente a AGU partiu para uma posição radical de eliminação do exercício de um direito, no caso o direito ao protesto expresso nas ocupações, e para isso também aparentemente decidiu se utilizar de todos os argumentos, inclusive o argumento baseado no interesse dos demais estudantes que vão fazer o Enem.

O senhor acha que o MEC tem alternativas para a realização do Enem?

O ponto é que ele tem responsabilidade e tem a obrigação de encontrar alternativas técnicas que não signifiquem esvaziar completamente o exercício do direito ao protesto. Essa é a ordem de exigência que colocam os princípios de direitos fundamentais. Como resolve do ponto de vista técnico? O importante é que a técnica não se sobreponha à garantia de um direito fundamental. Por isso que o direito é fundamental, inclusive. Por isso é que a Constituição protege a supremacia dos direitos fundamentais. A palavra fundamental é importante porque qualifica algo como estando na base, como sendo pressuposto para a organização administrativa do Estado. A partir daí adequa-se a técnica à realidade mutante de uma sociedade plural e democrática.

Desde a primeira onda de ocupações, principalmente nas redes estaduais, os estudantes têm se deparado também com o descontentamento de parte dos alunos e pais e até com movimentos como o “desocupa”. Como essa conciliação de direitos pode se dar?

Tem vários elementos aí. O primeiro é a ideia de conciliação... Nós temos que assumir que em determinadas situações de crise política os interesses são mesmo inconciliáveis. O interesse do MEC – e isso fica evidente no momento em que se edita uma Medida Provisória sem qualquer tipo de urgência – é ver rapidamente resolvido o debate sobre a reforma do ensino médio. O que significa desconsiderar ou não considerar importante qualquer tipo de participação e contestação que possa haver em relação a isso. Já o interesse dos estudantes e dos professores é não ter as suas vidas afetadas por uma Medida que vem de cima para baixo e já está em vigor. Ou seja, é bloquear e MP.

O que a ideia do direito à educação e do direito ao protesto como direitos fundamentais oferece não é propriamente uma conciliação, mas a possibilidade de mediação de interesses opostos com base em uma gramática especificamente desenhada para oferecer soluções razoáveis a esse tipo de problema. Isso pode ser feito. A questão é que dificilmente é feito somente pela base, apenas entre os estudantes que eventualmente querem o restabelecimento da rotina de aulas e aqueles que estão ocupando. É da responsabilidade das autoridades públicas – do MEC e das secretarias estaduais de educação – estimular essas mediações, esse diálogo. Você não pode cobrar isso do movimento social. O movimento social tem os seus interesses, não abre mão deles, e é para isso que existe. Por outro lado é lamentável que a advocacia pública, que é detentora daquela missão de aplicar a gramática de direitos no âmbito da União, abandone essa postura de Estado e se deixe capturar por uma outra gramática, do direito privado e do direito administrativo tradicional.

Na minha visão, o que acontece é que esse conflito – que é real e até esperado no chão da escola e das comunidades escolares – está sendo manipulado pelos poderes. Agora pelo MEC, como já foi pelas secretarias de educação nas ocupações passadas.

Dá para comparar a reação do MEC às reações dos governos estaduais em relação às ocupações?

Existe uma característica em comum entre as reformas propostas em São Paulo, em Goiás – que levaram às ocupações no passado – e, agora, a Medida Provisória: são reformas educacionais de perfil radical decididas unilateralmente. Não são meras mudanças implementais; são mudanças radicais, seja na estrutura curricular, seja na estrutura de oferta de vagas escolares. No caso de São Paulo, inclusive com fechamento de escolas, remanejamento de 750 mil estudantes, que era o que se esperava. No caso de Goiás mudança da própria natureza jurídica das escolas, com a entrega da gestão para as OSs, chegando a 70% de professores contratados por organizações sociais. Então reformas radicais propostas de forma unilateral. E comumente em sentido contrário ao que vinha sendo acumulado pelas organizações acadêmicas, pelos conselhos e fóruns da educação.

Portanto se temos uma característica comum entre essas reformas, vemos que a reação dos estudantes tem certa continuidade. E o que caracteriza é justamente o resgate da ideia de ação direta como possibilidade de resistência pacífica a essas reformas. E, em ambos os casos as ocupações começam como resistência, mas produzem experiências concretas de gestão do espaço da escola. E tem muita coisa bacana, lição prática do que poderia ser uma escola mais democrática e também mais atrativa, que respondesse mais às demandas dos estudantes. Um governo de perfil democrático deveria compreender essa dinâmica da luta social para além da visão bipolar e simplória que está agora implantada no MEC.

Qual deveria ser a postura do governo?

Um governo desse tipo [democrático] veria essa reação como uma possibilidade, inclusive, de abertura de um diálogo sobre a reforma do ensino médio. Eu não vejo ambiente mais rico do que as ocupações para se discutir uma reforma do ensino médio pensando inclusive em termos de eficácia. Porque um dos problemas das reformas educacionais no Brasil é que são feitas de forma unilateral, centralizada em Brasília, e justamente por isso é que não saem do papel, sofrem todos os tipos de resistência imagináveis, enfim, um desperdício tremendo.

Agora, o ponto é que os governos, por diversas outras razões – porque devem fidelidade a reformistas que não são necessariamente do campo democrático, porque tem interesses eleitorais de apresentarem reformas da forma mais rápida possível, e, no caso do governo Temer, essa reforma também foi proposta com o sentido de mostrar serviço, já que é um governo muito frágil, de legitimidade questionável e altamente impopular.

Então por vários motivos esse movimento riquíssimo dos estudantes, talvez a maior mobilização em torno da escola pública ocorrida no país nas últimas décadas, é visto desde uma lógica quase militar, do inimigo a ser combatido. E aí precisa montar uma estratégia de caráter também jurídico-militar, uma estratégia de litígio para desmontar o movimento. Não uma estratégia voltada a nenhum tipo de abertura de diálogo ou de consideração sobre os conflitos reais que estão colocados. Na criminologia isso se chama Direito Penal do Inimigo. A gente poderia chamar isso de Direito Educacional do Inimigo. Os inimigos, no caso, são os estudantes, uma barbaridade sem precedentes.

O episódio da morte de um estudante dentro de uma escola ocupada no Paraná pode reforçar essa estratégia radicalizada de combate às ocupações por parte do governo?

O governo federal atribui, assim como os governos de São Paulo, do Paraná, a radicalização unicamente ao movimento de resistência civil pacífica. Isso é uma tolice. De fato o movimento de ocupação de escolas é uma radicalização, não há dúvida quanto a isso. É da própria definição de movimento social e até de luta política algum grau de radicalização. O ponto é que essa questão é manipulada com o intuito de justificar igual radicalização das autoridades públicas. Essa é a falha do argumento.

Se aos movimentos sociais em sua resistência a medidas autoritárias é dada essa possibilidade de radicalização e de resistência civil pacífica, ao governo, à AGU, ao Ministério da Educação, aos governadores não é dada essa possibilidade. Em uma sociedade democrática esses governos deveriam ter a capacidade de ouvir as pautas que nascem desse processo de luta social no sentido de aprimorar as suas posições, a sua postura e até rever as medidas que são tomadas. Será que não existe nenhuma falha nessa Medida Provisória que merecesse uma discussão? Todas as críticas de professores e estudantes são infundadas, todas? A verdade é que a MP vem sendo duramente criticada do ponto de vista técnico, tem muitas falhas. Mas isso fica em segundo plano em função da posição radicalizada adotada pelo governo. E isso leva a um tipo de manipulação não só dessa tragédia que aconteceu no Paraná, mas de qualquer outra situação que possa acontecer, sem que se analise se os fatos têm alguma relação, ainda que indireta, com as ocupações ou têm outras causas mais diretas e relevantes. Mas os episódios são usados como instrumentos de radicalização e se entra num círculo vicioso de disputa radicalizada, muitas vezes estimulada por agentes governamentais de altíssimos escalões. Infelizmente é o que vai acontecer nesse caso também, será usado como instrumento de luta do governo. Porque, repito, o objetivo não é estabelecer qualquer tipo de canal de diálogo. O objetivo do governo é desmobilizar por todos os meios o movimento de ocupação.

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