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Diário Liberdade
Terça, 27 Dezembro 2016 12:30 Última modificação em Quinta, 29 Dezembro 2016 01:04

Contra o Estado avarento

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País: Reino Unido / Resenhas, Repressom e direitos humanos / Fonte: Jacobin Magazine

[Liam O'Hare; Tradução do Coletivo Vila Vudu] Conversa com Paul Laverty, roteirista de I, Daniel Blake ["Eu, Daniel Blake", 2016, Londres, trailer (ing.), sobre as indignidades do sistema de assistência pública em tempos de arrocho.  Filme será lançado em SP-SP (Brasil) dia 5/1/2017.

Não é sempre que um filme tem o impacto de "Eu, Daniel Blake". 

Uma história autêntica e cortante da agressão violenta contra a sociedade que é a chamada 'assistência pública' em tempos de arrocho, o filme foi várias vezes citado no Parlamento britânico, descrito como "um grito de guerra a favor dos despossuídos", e o título do filme já aparece como slogan em passeatas e manifestações.

Dirigido por Ken Loach, narra a história de um carpinteiro – Daniel Blake – que sofre um grave ataque cardíaco e recebe do médico a notícia de que não pode continuar a trabalhar. Inscreve-se para receber a Ajuda Desemprego [ing. Employment Support Allowance], mas é considerado "apto para o trabalho", depois que mostra que ainda é capaz de levantar os dois braços acima da cabeça.

Para muitos, é situação bem conhecida: milhares de pessoas em situação semelhante morreram pouco depois de serem dadas por "aptas para o trabalho" em testes como esse, aplicados pelo Departamento de Trabalho e Pensões [ing. Department for Work and Pensions (DWP)] da Grã-Bretanha.

Blake faz amizade com uma jovem mãe que também vive tempos de dificuldade, praticamente sem apoio algum de um sistema desumano e burocrático no qual, chegar atrasado para uma consulta pode ser motivo para cancelamento dos benefícios. Sem amolecer na indignação, o filme I, Daniel Blake consegue narrar sua história em tom suave, cheio de humor e humanidade.

Para Paul Laverty, autor do roteiro, nada há de inevitável ou acidental na violência desmesurada que o filme mostra. Ao contrário, quando nos encontramos no Glasgow Film Theatre, Laverty começa dizendo que não há acasos: que toda aquela violência é consequência direta das políticas de arrocho (chamadas de "políticas de austeridade", o que não são; são políticas de arrocho) do governo conservador, que empurraram os cidadãos até os limites mais extremos entre a vida e a morte.

"É crueldade consciente" – diz ele, a voz enfurecida. – "Há um regime absolutamente vicioso de castigos e proibições que já são causas de suicídios, de famílias inteiras sem teto, de miséria, doenças, fome; isso, de vários tipos e modos. Não digo retoricamente. Andei por todo o país ouvindo a história das pessoas, contadas por elas em primeira mão."

Laverty trabalha há muito tempo com Ken Loach, fez com ele vários filmes ao longo de 30 anos. A relação se comprovou imensamente frutífera, e I, Daniel Blake é o segundo filme da dupla a receber a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes [o primeiro foi "Ventos de liberdade", 2006 (NTs)].

Mas o que mais entusiasmou Laverty foi o impacto social que o filme está tendo. "Somos todos Daniel Blake" é bandeira abraçada por ativistas no Reino Unido e em todo o mundo. O filme vem dando novo ímpeto a campanhas há muito tempo existentes contra o arrocho [não é "austeridade": é arrocho], e expôs a brutalidade do sistema de assistência pública, em governos neoliberais conservadores, para públicos muito mais amplos. Em recente manifestação na França, viam-se centenas de cartazes de "Moi, Daniel Blake" [fr. "Eu, Daniel Blake"].

Laverty teria previsto o efeito mobilizador e galvanizador que o filme teria?

"Bom... É só um filme. É uma história. Vez ou outra qualquer filme acaba num beco sem saída, ninguém vê ou comenta; outras vezes ecoam. O que me emociona muito agora é que nosso filme está ecoando muito, mais do que qualquer dos outros filmes que jamais fiz."

"Acho que tocamos algum nervo profundo, não só aqui no Reino Unido, mas em outros países onde o filme já foi exibido. Acho que tem a ver com a dignidade humana, dignidade de todos os seres humanos. Não somos estatísticas. Nossos personagens não são só cliente ou 'consumidor' ou um número no INSS [ing. National Insurance Number]. Todos os homens e mulheres têm integral direito a vida digna, com segurança e amparo na doença, na velhice."

"Há recursos mais do que suficientes para fazer isso. Nossa função é imaginar uma alternativa. Um filme, só ele, nada muda. Mas pode contribuir se ajuda a motivar as pessoas para que se organizem e comecem a agir."

Essa movimentação já começou, de fato, no Reino Unido. Antes de nossa entrevista, Laverty esteve no Parlamento Escocês, onde o secretário do Trabalho e Pensões do Reino Unido Damian Green depunha numa Comissão Parlamentar. O ministro não poupou críticas, declarou que o filme de Loach-Laverty não passava de "trabalho de ficção monstruosamente injusto". Depois, Green admitiu não ter assistido ao filme.

A confissão levou George Adam, político escocês, a presentear o secretário com uma cópia do roteiro do filme, lá mesmo durante seu depoimento à Comissão. A cópia estava autografada por Laverty, com uma nota em que dizia que "confirmo a veracidade de cada um e de todos os casos e incidentes narrados no filme", que é "reflexão justa do que está realmente acontecendo hoje". Durante toda a sessão, um ativista manteve-se sentado por trás de Green, vestindo uma camiseta de "I, Daniel Blake".

Menciono o caso, e Laverty sorri.

"Pois é. É como se Daniel Blake o seguisse por onde ele ande! Mas não pude deixar de rir, quando ele disse que o filme seria "obra de ficção". Não que queira me comparar, mas... quem diria que Dickens escreveu obras de ficção? Zola? Steinbeck? Todos são trabalhos e artistas que desejavam capturar aquele preciso momento da realidade."

"Somos contadores de histórias, fazemos filmes. Não queremos ser só agentes de agitprop. Por isso, temos de encontrar relacionamentos delicados, frágeis, complicados. A chave é essa. Acho que aí está o motivo pelo qual o filme tocou as pessoas: porque trabalhamos para que tocasse. A agitprop não cuida tanto da pesquisa e não visa a mostrar algo maior. Por isso não tem eco social profundo."

"[O ministro] Damian Green e aqueles funcionários falam de consumidores. Não. Aquelas pessoas não são consumidores: são cidadãos, como se vê logo, quando você se dedica a ouvir a miséria a que está reduzida a vida dessas pessoas. Estão exaustos, estão fartos, e, sim, contam tudo. Muitos contam."

"Mas acho que, sim, essa cultura do medo é realmente importante. O governo nega e nega e diz 'Temos de conter gastos, temos de cortar na carne, não podemos gastar o que o Estado não tem...' Assim se cria o medo, o desespero. Porque é o medo, é o desespero que leva as pessoas a aceitar esses contratos de trabalho que só dá proteção aos patrões. O medo é fabricado pelo governo, e tem de estar presente sempre. O medo é parte da visão de mundo deles."

O fato de o filme ser construído com eventos realmente acontecidos com pessoas reais torna tudo mais impressionante. Uma cena pinta quadro particularmente sombrio do desespero pelo que passam algumas pessoas repentinamente atingidas pela pobreza e pelo arrocho.

Katie, uma das personagens, que não comia há dias, abre em desespero uma lata de feijão no próprio local onde recebe alguma comida gratuita ['bancos de comida'] e tenta comer o feijão com a mão. É devastador. É prova de que os bancos de comida já são fator cada vez mais 'naturalizado' da sobrevivência para muitos no Reino Unido.

Antes de a coalizão Liberais Conservadores e Liberais Democratas assumir o poder em 2009-2010, a organização Trussell Trust de caridade pagou por 41 mil suprimentos de comida emergencial, a 56 bancos de comida. Esse número aumentou dramaticamente ano a ano; ano passado Trussell pagou mais de um milhão de pacotes, a 424 bancos de comida.

Outra cena do filme mostra Daniel cada vez mais frustrado por ser deixado sem resposta ao telefone, durante horas, quando tenta apresentar seu requerimento para obter o auxílio de apoio a desempregados.

"Ouvi as histórias mais incríveis" – diz Laverty. – "Há a legislação que diz-que garante direitos, mas se você precisa dela, começa a descobrir os pequenos detalhes que ninguém conhece antes de começar a usar os tais 'direitos'… Telefones, por exemplo: você recebe um número e é livre para telefonar. Mas é deixado lá, à espera, sem resposta. Quem não passa por tudo isso não sabe do que se trata. Até que você descobre que as pessoas pagam pelos tais telefonemas, de um modo ou de outro, e pagam caro para ouvir aquela porra de Vivaldi às vezes por uma hora e meia. (...) Há toda uma ineficiência cuidadosamente planejada em todos esses 'passos'."

O regime de multas e punições do 'INSS do Reino Unido' é elemento do sistema de 'bem-estar' que o filma ajudou a expor e iluminou com clareza. Laverty conta a história de um homem em Edinburgh com quem ele falou logo depois de perder o benefício porque não compareceu a uma convocação agendada, porque sua esposa entrou em trabalho de parto. Duas pessoas telefonaram para comunicar q ele não poderia comparecer, mas de nada adiantou: os benefícios que ele recebia foram cancelados.

A regularidade das punições não é acaso. E-mails vazados revelam que os funcionários do Departamento de Trabalho e Pensões da Grã-Bretanha está sob violenta pressão dos chefes para punir beneficiários, ou passam por 'revisões de desempenho' e "planos de aprimoramento pessoal". As punições podem envolver suspensão dos benefícios, por período que podem ir de quatro semana a quatro anos.

A efetividade das medidas foram questionadas por militantes e, recentemente, também por um estudo do próprio Gabinete Nacional de Auditagem do Reino Unido. Em avaliação assustadora, os auditores descobriram que as punições empurraram milhares de pessoas para a miséria absoluta e depressão, sem qualquer prova de que tenham realmente servido para gerar o resultado q supostamente buscavam. O mesmo estudo descobriu que a gestão do sistema de punições custa muito mais ao estado do que estaria sendo 'economizado'.

Mhairi Black, membro do Partido Nacional Escocês, oposição cerrada contra o regime de punições e recentemente levou um projeto de lei ao Parlamento, para introduzir um novo código de conduta para o pessoal do Centro de Trabalho e Pensões em todo o Reino Unido. Pela nova lei, devem ser consideradas circunstâncias pessoais da vida antes de imposta qualquer sanção. Mas os deputados Conservadores obstruíram o debate e impediram que o projeto fosse analisado.

A abordagem que o governo britânico vem adotando tem também vários críticos fora dos corredores de Westminster. Investigação conduzida pela ONU concluiu que os direitos de pessoas com necessidades especiais têm sido "violados sistematicamente" por mudanças na legislação do bem-estar e assistência social em todo o país. Essas pessoas têm sido afetadas em maior proporção que o restante da população pelas mudanças introduzidas na legislação; o relatório repete o que militantes dizem já há muito tempo, que os portadores de necessidades especiais têm sido atacados por uma narrativa que os apresenta como "pouco produtivos; um peso extra às costas dos contribuintes".

O filme será lançado nos Estados Unidos depois do Natal, mas já foi exibido no New York Film Festival em outubro [lançamento no Brasil anunciado para o dia 5/1/2017]. A experiência de Laverty no festival convenceu-o de que o tema e as questões que o filme discute são supranacionais.

"Foi exibido no Lincoln Center, e lá havia cerca de 900 pessoas" – diz ele. – "Eu estava sem saber o que achariam de nosso filminho, que se passa no nordeste da Inglaterra. Caminhando pela cidade, passei por uma bela igreja, não distante do LC. Havia uma fila de pessoas esperando para receber comida, e acabei conversando com um homem que ali estava, James Green. Acabava de perder a casa onde morava, porque o pai morreu e ele perdeu a casa e passou a viver na rua. Mas ouvindo a história dele, pensei, [o filme] podia chamar-se "Eu, James Green". Apresentei o filme, na exibição, contando essa história."

"Porque afinal de contas, o filme levanta questões muito mais amplas sobre como organizamos nossa economia, mesmo que consigamos nos livrar do regime de punições. Como vamos distribuir o trabalho, gerar trabalho para todos? Será possível esperar que criemos uma sociedade de pessoas que cuidam umas das outras e se interessam umas pelas outras?"

"Claro, com certeza aparecerá um preguiçoso vagabundo, que lá ficará sentado sobre o traseiro, de cara para a TV. Mas mesmo assim, é mais barato que empurrar as pessoas para a depressão e o suicídio. Não podemos iluminar o espírito das pessoas, em vez de lançá-las em escuridão cada vez mais profunda?"

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