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Diário Liberdade
Terça, 03 Janeiro 2017 12:12 Última modificação em Sexta, 06 Janeiro 2017 11:01

Líbia, sepultada no crime e no silêncio Destaque

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País: Líbia / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: O Diário

[Higino Polo] Passam em Março próximo 6 anos sobre o início da agressão à Líbia pela NATO. O país foi destruído.

 O povo líbio vive no inferno. Mas deixou de ser assunto para os grandes media internacionais, até porque operações semelhantes prosseguem noutros lugares, nomeadamente na Síria. Enquanto Obama se despede da presidência dos EUA, é indispensável não deixar esquecer nenhuma peça do seu criminoso currículo. O imperialismo, do qual os EUA constituem a mais agressiva potência, é o pior inimigo de toda a humanidade.

Não sabemos quantas pessoas morreram na Líbia em consequência da brutal intervenção da NATO em 2011. Algumas fontes falam de uns trinta mil mortos; outras aumentam esse número. A Cruz Vermelha, por seu lado, calcula uns cento e vinte mil mortos, mas não há dúvida de que essa guerra que a NATO iniciou destruiu o país e afundou os seus seis milhões de habitantes num pesadelo sinistro.

Em Março próximo passam seis anos sobre o início da matança: os EUA, França e Grã-Bretanha lançaram a partir de navios e aviões um diluvio de bombas e de misseis de cruzeiro. Justificaram a guerra e a carniçaria com a resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que apenas falava de utilizar as “medidas necessárias” para proteger a população civil que “estivesse ameaçada”, e que autorizou uma zona de exclusão aérea, mas não a invasão do país. Não havia autorização alguma para iniciar uma intervenção militar, nem muito menos um ataque para derrubar o governo. China e Rússia, bem como a India e a Alemanha, abstiveram-se naquela votação do Conselho de Segurança e, posteriormente, perante a guerra imposta, tanto Moscovo como Pequim denunciaram a abusiva interpretação que Washington, os seus aliados europeus e a NATO tinham feito da resolução do Conselho. A África do Sul, que também tinha votado a favor da resolução, denunciou depois o uso desmesurado do acordo para forçar uma “mudança de regime e a ocupação militar do país”.

Foi tal a hipocrisia de Washington, Londres e Paris, que os seus aviões chegaram a bombardear a população civil em Bengasi e Misrata, entre outras cidades líbias, matando centenas de pessoas, apesar de supostamente intervirem em sua defesa. Previamente, as “forças rebeldes” foram treinadas por instrutores militares norte-americanos e de outros países da NATO, ao mesmo tempo que lhes forneceram armamento sofisticado e informação, e o Departamento de Estado norte-americano trabalhou para criar um Conselho Nacional de Transição para o impor como novo governo após a derrota de Kadhafi. De facto, desde antes do início da agressão militar, comandos militares britânicos e norte-americanos (em operações aprovadas por Cameron e Obama, violando a legalidade internacional) tinham-se infiltrado na Líbia e levavam a cabo acções de sabotagem e assassínios selectivos. Os militares ocidentais chegaram ao extremo de utilizar vestimenta similar aos milicianos do bando rebelde, para camuflar a sua intervenção ante as instituições internacionais: eram militares da NATO, mas nunca reconheceram a sua condição, e treinaram os rebeldes e lutaram junto a eles.

Durante o verão de 2011, a NATO lançou milhares de missões de combate, e enviou comandos de “operações especiais” para reforçar os ataques dos rebeldes, armados e apoiados pela aliança ocidental. Em 20 de Outubro, sem forças para resistir, Kadhafi fugiu de Sirte, a coluna em que se deslocava foi atacada por aviões norte-americanos e franceses e, finalmente, foi detido por destacamentos rebeldes, ajudados por esses “comandos de operações especiais” norte-americanos. Depois assassinaram-no a sangue frio. Cinco dias antes do assassínio de Kadhafi o primeiro-ministro britânico, Cameron, e o presidente francês, Sarkozy, voaram até à Líbia, para a zona controlada pelos rebeldes, enquanto as equipas da CIA norte-americana trabalhavam para localizar Kadhafi e assassiná-lo. A sua morte foi celebrada por Obama, Cameron e Sarkozy.
Violando a resolução da ONU, utilizando de novo a guerra como instrumento da sua política externa, os EUA e seus aliados alcançaram os seus propósitos. Os bombardeamentos da NATO destruíram aeroportos, infra-estruturas e portos do país, instalações oficiais, quartéis, estradas e, segundo estimativas da ONU, centenas de milhares de pessoas foram forçadas a fugir, convertendo-se em refugiados na sua própria terra. As reservas e recursos do país no estrangeiro foram objecto de intervenção pelos governos ocidentais. Hoje, a economia do país é apenas um terço parte do que era antes da intervenção da NATO em 2011. Depois, estalou a luta de bandos entre os diferentes grupos armados (como sucedeu no Afeganistão após o triunfo dos “senhores da guerra”, apoiados também pelos EUA); chegaram ao país o caos, a devastação, os milicianos fanáticos e bandidos armados que se apoderaram de tudo. A Líbia passou a ser um pesadelo, onde os sequestros, os centros clandestinos de tortura, os assassínios, as violações de mulheres tomaram conta da vida cotidiana no inferno; e onde inclusivamente faltam alimentos e remédio, ao ponto de em muitas cidades, como em Bengasi, os habitantes se verem obrigados a comer alimentos podres e ratos.

A essa paisagem de inferno une-se a destruição de centros públicos, de praças, parques e lugares onde a população acorria antes da guerra; junta-se o roubo de propriedades, os fuzilamentos e decapitações públicas organizadas pelos grupos jihadistas, que passaram a ser moeda corrente da nova Líbia. Fontes independentes falam de centenas de pessoas, talvez milhares, decapitadas pelos destacamentos armados de fanáticos milicianos religiosos. Grupos salafistas e jihadistas continuam a controlar importantes áreas do território e, embora Washington tenha tentado erguer um cenário democrático, nas eleições de Junho de 2014, sobre um censo de três milhões e meio de personas, apenas votou 18 % da população. Muitas cidades ficaram convertidas em ruinas, e as minas antipessoal são um perigo mortal para os sobreviventes.

Várias centenas de grupos armados, enfrentados entre si, pugnam pelo controlo do território e da riqueza do país, juntamente com as mafias que traficam pessoas, que condenam emigrantes a trabalhos forçados, que matam com total impunidade, enquanto dois governos e dois “parlamentos”, em Trípoli e em Tobruk, (este, apoiado então pela NATO), tentavam derrotar o adversário e obter o reconhecimento exterior. Para sair do caos, os governos ocidentais impulsionaram o chamado “governo de unidade nacional”, criado em Marrocos em Dezembro de 2015, presidido por Fayez al-Sarraj, embora este continue sem estabelecer sua autoridade em todo el país, e seja inclusivamente incapaz de controlar Trípoli, onde existem varias dezenas de milícias armadas cuja agenda se centra em apoderar-se do petróleo para o exportar, em extorsão à população, aos imigrantes, e em traficar pessoas. Em outras importantes cidades líbias, como Sirte, Misrata, Tobruk, sucede o mesmo. Por seu lado, o general Jalifa Haftar controla agora Tobruk, com ajuda militar e financeira do Egipto e Emiratos Árabes Unidos. Haftar é um militar líbio que, após romper com Kadhafi, foi transferido pela CIA para os EUA nos anos noventa, para, posteriormente, encabeçar a milícia armada que a agência norte-americana financiou. A estes há que acrescentar as forças controladas pelo Daesh, o autodenominado Estado Islâmico, que conta com importantes conivências nas monarquias do golfo Pérsico.

Nesse caos infernal, Washington continua enviando “grupos de operações especiais” (como o que chegou em Dezembro de 2015 à base militar de Al-Watiya, no distrito de An Nuqat al Khams, junto à fronteira tunisina, comando que foi bloqueado por grupos armados e obrigado depois a sair do país), e utiliza a sua aviação para bombardear milícias que não são do seu agrado, enquanto apoia o governo de Fayez al-Sarraj, embora continue a contar com o trunfo de Haftar, velho empregado da CIA. Na prática, as diferentes milícias bloqueiam-se entre si, e o caos é tal que não existe um bando capaz de se impor aos demais. Os EUA tentam estabilizar a situação através do governo de Fayez al-Sarraj, embora não desdenhassem apoiar um governo de Haftar se este conseguisse impor-se na maior parte do país: querem contar com um governo cliente que assegure os seus interesses, e o Departamento de Estado é capaz de tornar apresentável qualquer governo de bandidos.

Os EUA e seus aliados europeus (Grã Bretanha, França) responsáveis pela tragedia do país, estão interessados em questões diferentes: Bruxelas tenta conter a chegada de emigrantes vindos da Líbia, que algumas fontes calculam em 150.000 anuais, assunto que preocupa especialmente a Alemanha; Washington pretende controlar o Daesh (com quem contemporiza na Síria onde, de facto, é visto como um aliado na guerra para derrubar o governo de Damasco), desactivar as centenas de milícias, e recuperar a produção de petróleo. Por seu lado, o enviado especial da ONU para a Líbia, Martin Kobler, tenta, sem sucesso, mediar no meio do caos.

Entretanto, as televisões e a grande imprensa internacional há tempo que deixaram de mostrar interesse pela Líbia, seguindo um guião utilizado com êxito muitas vezes. A Líbia, convertida num estado falhado, com presença do Daesh (que acaba de perder Sirte), onde todos os grupos e milícias cometem crimes de guerra ante a indiferença ocidental, é hoje um país pelo qual nenhuma potência da NATO assume responsabilidade, embora uma terça parte da população necessite de ajuda alimentar urgente, embora os líbios tenham que comer ratos e beber águas pestilentas, embora se vejam obrigados a contemplar constantes assassínios e decapitações, embora ali a vida não valha nada, e os governos dessas potências sejam conscientes de que os líbios foram condenados a viver num inferno.

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