Quando em setembro de 2008 os jornais noticiaram o colapso do banco de investimentos Lehman Brothers, com mais de $600 bilhões em ativos, os economistas e intelectuais de distintas áreas perceberam rapidamente que estávamos diante não de uma crise localizada da economia norteamericana, mas de uma crise histórica do capitalismo. Os acontecimentos que sucederam este episódio apenas atestam a profundidade da crise econômica internacional; de certa forma, pode-se dizer que além do primeiro impacto disruptivo, a crise já conforma contornos e mutações próprias no capitalismo em escala global.
Passada quase uma década desses eventos é possível começar a refletir o significado e a dimensão da crise não apenas como fenômeno econômico, mas como atingiu as mais distintas esferas da sociedade civil, do Estado, da política, das classes, mudanças intimamente ligadas ao refazer-se da valorização do valor, da exploração capitalista e, em suma, da acumulação de capital. Nesse sentido, pensar o alcance da crise é refletir a história, adentrar ao caráter histórico da transformação em curso.
Para essa reflexão, podemos nos inspirar na célebre introdução de Hegel ao curso sobre Filosofia da História, quando escrevia que
"A história só deve recorrer puramente o que é, o que foi, os acontecimentos e atos. É mais verdadeira quanto mais exclusivamente se atem ao dado – e posto que isso não se oferece de um modo imediato, mas que exige várias investigações, entrelaçadas também com o pensamento – quanto mais exclusivamente se propõe como fim o sucedido (HEGEL, 2010 p. 19 – tradução nossa)"
Ou seja, olhando para o período que se desenvolveu entre o começo da crise e os dias atuais é possível perceber o amplo alcance das transformações que estamos vivenciando, mas isso não indica diretamente para qual trilha histórica seguimos diretamente, já que esse período não se marcou pelo caráter abrupto das transformações (em analogia aos anos de 1930), mas justamente por uma crise intensa, profunda e persistente.
Ou seja, para dizer em outros termos, se recorremos ao método de Hegel e nos atemos “ao que é”, partimos de uma primeira importante interrogante para a reflexão sobre a crise capitalista em curso: trata-se de uma mudança de fase do capitalismo (de “época”, no sentido mais amplo), de uma etapa dentro de uma grande fase (imperialista) ou a continuidade na descontinuidade é tão grande que podemos dizer que vivemos em um interregno entre o fim de uma etapa e o “não começo” de outra?
Para pensar essa questão, uma das incursões necessárias que devemos fazer (e a qual queríamos propor para introduzir essa reflexão) é pensar a última grande modificação, no sentido forte do termo, de uma “fase” do capitalismo, que ao nosso ver nos remete a virada do século XX, com a conformação de uma fase conhecida como imperialista do sistema de reprodução do capital.
A definição dessa nova fase passou por um amplo processo de elaborações teóricas, desde a revisitação dos estudos de Marx do livro terceiro de O Capital, até a análise concreta das modificações que ocorriam no sistema, seja a reflexão sobre o capital bancário e o sistema de crédito, as novas conformações industriais, a concentração de capital, e fundamentalmente o “mundo de monopólios” que começava a surgir, com grandes empresas, associações transnacionais e, especialmente, uma nova forma de metabolismo do capital que começava a dominar a economia mundial: o capital financeiro.
Lenin, figura mais emblemática da Revolução Russa e um dos grandes nomes do marxismo no século XX, foi quem conseguiu dar uma forma mais acabada a reflexão sobre o sentido de “nova fase” do capitalismo. Em seu texto de 1916 sobre o tema, que intitulou como “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, Lenin sintetizou em cinco tendências fundamentais como marcas dessa mudança, a saber: a) o papel decisivo dos monopólios na vida econômica; b) fusão do capital bancário e industrial formando o capital financeiro (e a oligarquia financeira); c) exportação de capitais sobrepassando a exportação de mercadorias; d) formação de associações internacionais monopolistas; e) por fim, o termo da partilha do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.
Ou seja, podemos dizer que, de certa forma, a nova configuração do capital no sistema internacional - com a fusão entre parte de suas formas (capital bancário e capital industrial), a formação monopólios e associações e a própria exportação internacional do capital – tratou-se de uma das determinações fundamentais para que Lenin concluísse que existia uma nova fase do capitalismo.
As relações interestatais e as consequências do movimento econômico no embate político estão entre um dos pontos fundamentais elencados na análise de Lenin, já que precisamente quando estava elaborando sua teoria do imperialismo o mundo vivia a Primeira Guerra Mundial, ou seja, um primeiro impacto em escala internacional e de consequências até então incomensuráveis da disputa acirrada entre os monopólios financeiros em sua forma interestatal. A “partilha do mundo” entre as potências e o ímpeto financeiro de expansão capitalista localizavam a análise da guerra como parte da reflexão geral sobre a época imperialista, ou seja, contextualizando a guerra mundial em uma série de transformações no sistema de conjunto.
Um terceiro âmbito de reflexão sobre a teoria de Lenin, ainda que não elencado em sua síntese de cinco pontos sobre a época, mas completamente presente em sua reflexão no conjunto da obra de 1916 e outros textos, está a reflexão sobre o lugar da luta de classes no conjunto da caracterização. Em termos gerais, parte importante da reflexão do teórico marxista versa sobre como a revolução socialista, num contexto de parasitismo financeiro e decomposição do sistema, se coloca como resposta mais concreta, como tarefa mais generalizada na consciência operária (em âmbito internacional). Em outras palavras, a revolução entra na ordem-do-dia.
No entanto, contraditoriamente, Lenin também está preocupado no movimento operário com um novo fenômeno que influenciará decisivamente a luta de classes: a formação de uma aristocracia operária. Na caracterização, Lenin vê completamente ligado a mudança de época o parasitismo e a “distribuição de migalhas” desse processo a uma pequena “aristocracia” no conjunto da classe, conforme escreve em um dos prefácios da obra:
"É evidente que tão gigantesco superlucro (visto ser obtido para além do lucro que os capitalistas extraem aos operários do seu “próprio” país) permite subornar os dirigentes operários e a camada superior da aristocracia operária. Os capitalistas dos países “avançados”, subornam-nos efetivamente, e fazem-no de mil e uma maneiras, diretas e indiretas, abertas e ocultas. Essa camada de operários aburguesados ou de “aristocracia operária”, inteiramente pequenos burgueses pelo seu gênero de vida, pelos seus vencimentos e por toda a sua concepção do mundo, constitui o principal apoio da II Internacional"
Ou seja, a aristocratização como produto da época terá consequências muito importantes na visão de Lenin tanto objetivamente na classe operária, como subjetivamente nos partidos que tem nesses setores sua principal base social, tendo o florescimento do reformismo sua derivação ideológica, que é o problema central que Lenin trata em sua discussão no imperialismo contra as capitulações da II internacional.
Nesse sentido, no Imperialismo Lenin aborda as transformações no capital e suas formas de reprodução (a predominância do capital financeiro em particular), as relações interestatais (com consequências em fenômenos como a guerra mundial) e a luta de classes e transformações objetivas e subjetivas no interior da classe.
A ironia de recuperar essa fase de transformação da economia capitalista na primeira década do século XX para pensar a atualidade está em que, de certa forma, o capitalismo se alterou completamente, mas as alterações parecem se dar conduzidas pelos mesmos pilares (“mudou tudo para não mudar nada”): a hiperfinanceirização e a sobreacumulação de capitais que marcou as últimas décadas, as novas formas do capital financeiro na busca de valorização, o papel dos monopólios, oligopólios e as transnacionais na economia mundial, a hegemonia das potências nas relações interestatais e seus embates, tudo é muito mais complexo e, ao mesmo tempo, bastante parecido, uma descontinuidade na continuidade.
Para se pensar uma nova fase, portanto, haveria que observar se a economia internacional, as relações interestatais, as relações entre as classes e sua expressão econômica entre formas de capital e da exploração capitalista se alteraram ou complexificaram de tal forma a fincar novas bases de acumulação em nível internacional.
Nesse sentido, a reflexão sobre o alcance da crise de 2008 nos exige a compreensão do período anterior à crise econômica, expressa, sobretudo, em neoliberalismo, hegemonia (decadente) norteamericana e um intervalo de décadas sem revoluções clássicas, ou seja, de defensiva na classe trabalhadora. A partir daí, podemos dar uma resposta ao momento em que vivemos buscando desvendar em seus traços gerais a interconexão entre a crise econômica de 2008, as relações entre os estados e as formas hegemônicas e de equilíbrio nesse plano e a relação entre as classes - seja os efeitos da crise nas formas de capital, seja as transformações na classe trabalhadora, os efeitos disso na burocracia sindical e seus primeiros reflexos de resistência em âmbito internacional como expressão da crise.
[Seguiremos a reflexão no próximo artigo, tratando da etapa anterior à crise]
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Bibliografia citada:
HEGEL, G.W.F. Filosofia de la historia universal. Buenos Aires: Losada, 2010.
LENIN, V.L. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1982.