O punhal que Trump enfiou no coração da aliança Rússia-Turquia-Irã deve ter sido como uma revelação para Moscou – recordando ao presidente Erdogan os charmes de sua olvidada identidade OTAN. (Sobre isso também em Trump hails Turkey as strategic partner, NATO ally.)
Trump aparentemente está reexaminando a velha agenda de 'mudança de regime' na Síria. Mike Pompeo, chefão da CIA, pousou hoje cedo em Ankara. A estratégia dos EUA visa a quebrar o eixo russos-turcos-iranianos na Síria. É o que explica o tsunami de hostilidade contra o Irã.
Há uma conversa de que o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos seria 'listado' como Organização Terrorista. O IRGC é responsável por traçar a estratégia da guerra de Assad na Síria; tem papel crucial nas operações em solo e, se os EUA o declarar Organização Terrorista, passará a poder ser atacado nas 'operações de contraterrorismo' comandadas pelos EUA na Síria (e no Iraque). Claro que, sem o apoio do IRGC, as operações aéreas russas tornam-se sem sentido, e as forças do governo sírio não conseguirão sustentar-se nos territórios onde estão.
A Rússia vê a ofensiva do governo Trump contra o Irã como parte de uma grande estratégia. Moscou saiu-se com várias declarações fortes de apoio a Teerã, repudiando firmemente do começo ao fim as várias acusações que o governo Trump fez contra o Irã. (Aqui, aqui, e aqui.).
As relações russo-norte-americanas têm história muito longa, e Washington já várias vezes fez o jogo do 'policial-bonzinho/policial-durão, em jogada com o Congresso, para desnortear a diplomacia russa. Matéria recente no Wall Street Journal (republicada por Fox News) intitulada Governo Trump procura rachar as relações da Rússia com o Irã mostra que a equipe de Trump tem interpretação simplesmente ingênua das relações estratégicas Rússia-Irã.
Mas o teste definitivo está em o quanto resistirá a aliança da Rússia com a China, na era de Donald Trump. Depois de relativa pasmaceira durante a transição em Washington, Moscou e Pequim escalaram para contatos de alto nível, o que significa afirmação forte, dos dois lados, da centralidade da cooperação e da coordenação de políticas externas nesses tempos de incerteza que crescem no horizonte. Houve alguns sinais importantes nesse sentido, vindos de Moscou:
– presidente Vladimir Putin participará da Cúpula "Um Cinturão uma Estrada" que Xi Jinping presidirá em Maio, e que a China classificou como o evento internacional mais importante de todo o calendário da política exterior em 2017;
– presidente Xi fará visita oficial à Rússia em “meados do ano” (talvez coincidindo com a Cúpula da Organização de Segurança e Cooperação em Astana, em junho);
– primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev e seu contraparte chinês Li Keqiang têm reunião marcada para o final de 2017;
– Várias reuniões de vários vice-primeiros-ministros, e também dos ministros da Defesa e das Relações Exteriores também estão planejadas para esse ano;
– o presidente do Comitê Central do Congresso Nacional do Povo Chinês Zhang Dejiang é esperado em visita oficial à Rússia no primeiro semestre do ano.
Na mesma direção, o embaixador da Rússia à China Andrei Denisov destacou que Moscou impedirá qualquer tentativa dos EUA para interromper as relações entre Rússia e China. Denisov fez alguns comentários muito importantes, especialmente sobre o Mar do Sul da China:
- Nossa posição [da Rússia] sobre as disputas territoriais no Mar do Sul da China não mudará e não pode mudar. Não pode mudar porque é posição equilibrada, verificada e lógica (...). Não estamos interferindo nessas disputas, e alertamos outros contra qualquer interferência.
- Toda e qualquer interferência externa terá efeito negativo, porque nenhum terceiro conseguirá manter-se neutro numa específica disputa regional e todo e qualquer terceiro só complicará a discussão.
- A Rússia aprecia o alto nível de parceria entre China, Vietnã e outros estados do Sudeste Asiático para resolver a questão.
- A Rússia está pronta para ajudar a criar uma atmosfera favorável para resolver tais questões.
Significativamente, Denisov comentou diretamente as relações de três vias entre Rússia, China e os EUA. Disse ele:
- "Há muita conversa agora sobre desdobramentos das eleições nos EUA (...). O período de transição ainda não acabou (...) Os dois lados, nós e nossos parceiros chineses levamos isso sempre em conta em nossa política, de um ou de outro modo. Mas, permitam-me repetir mais uma vez que é pouco provável que as relações entre Rússia e China nesse caso sejam afetadas. Elas são algo que tem valor constante, seja para a China seja para nós. Não vejo qualquer indicação de que alguma coisa possa mudar nesse ponto. Além do mais, seria estranho para a Rússia, se nosso país, com o papel que tem nos assuntos globais, fosse visto como fator de algum modo variável, que pudesse ser empurrado numa direção ou noutra. As relações russo-chinesas tornaram-se importante fator de estabilização para as relações internacionais no quadro de crescente turbulência – culpa de nossos parceiros ocidentais, digamos bem claramente, incluindo em primeiro lugar e sobretudo o governo anterior dos EUA." (TASS)
Sem dúvida alguma, Denisov, diplomata de primeira classe, trabalhava aí para deixar perfeitamente claro para o governo Trump que a bússola das políticas exteriores da Rússia acompanha sempre bem de perto princípios fundamentais, e que se o governo Trump não está disposto ou não é capaz de avançar nas relações com a Rússia, nem por isso a vida parará, na Kremlyovskaya naberezhnaya [avenida que margeia o rio Moskva, pelo centro de Moscou e leva até o Kremlin].