Marx e Engels identificaram os aspectos essenciais do capitalismo do seu tempo e, ao mesmo tempo, construíram o método de análise que permite compreender as suas tendências de evolução – que em muitos aspectos anteciparam -, os seus limites, as suas cíclicas e inevitáveis crises. «A grande crise que rebentou em 2008 recolocou O Capital num lugar preponderante da literatura económica.»
A comemoração do 150º aniversário de O Capital renovou o debate sobre as contribuições legadas por Marx para a compreensão da sociedade actual. O texto continua a suscitar apaixonadas adesões e fanáticas rejeições, mas já não exerce a enorme influência que teve nos anos 60 e 70. Também não sofre o esquecimento que acompanhou o desmoronamento da União Soviética. Nenhum investigador probo ignora actualmente o significado do livro e as releituras trespassam a academia e a influência que exerce sobre numerosos pensadores.
O interesse por Marx verifica-se entre os economistas que salientam a sua antecipação da mundialização. Outros descobrem uma precoce interpretação da degradação do meio ambiente e ligam a ausência de soluções ao desastre ecológico, com a crise civilizacional prevista pelo teórico alemão.
A sua obra é retomada com maior frequência para caracterizar a etapa neoliberal. Vários autores investigam as semelhanças desse esquema com o «capitalismo puro» e desregulado que prevalecia na época de Marx.
Num tempo de privatizações, abertura comercial e flexibilização laboral transparecem traços que estavam ocultos durante a fase keynesiana.
Os diagnósticos do pensador alemão recuperaram nitidez no século XXI.
A grande crise que rebentou em 2008 recolocou O Capital num lugar preponderante da literatura económica. O desmoronamento financeiro não desembocou apenas numa impactante recessão. Além disso, precipitou uma expansão inédita da despesa pública para socorrer os bancos.
Marx retoma importância neste cenário de agudos desequilíbrios capitalistas. Por esta razão, as suas explicações sobre o funcionamento e a crise do sistema são revisitadas com grande atenção.
Do mesmo modo, alguns analistas pensam que as suas respostas perderam actualidade ao cabo de 150 anos. É evidente que o regime vigente é muito diferente do que imperava no período que o escritor alemão o conheceu. O registo destas diferenças contribui para evitar as descobertas dogmáticas do «já Marx disse» sobre acontecimentos que lhe sucederam.
Mas convém também recordar que o estudioso alemão investigou o mesmo modo de produção vigente na actualidade. Esse regime continua regulado pelas mesmas leis e sujeito aos mesmos princípios. Todas as denominações que ocultam essa persistência (economia apenas, mercado, modernidade, pós-industrialismo) obstruem a compreensão do capitalismo da nossa era.
A obra de Marx manterá o seu interesse enquanto subsistir uma estrutura económico-social governada pela concorrência, o lucro e a exploração. Mas quais são os aspectos mais pertinentes da sua teoria para clarificar o actual modelo neoliberal?
Refutações falhadas
Marx captou a especificidade do capitalismo corrigindo as inconsistências dos seus antecessores da economia política clássica. Manteve a indagação totalizadora da economia que Smith e Ricardo encararam, superando as ingenuidades da «mão invisível». Ao descobrir as obstruções com que o capitalismo se depara revolucionou o estudo desse modo de produção.
O autor de O Capital compreendeu que essas tensões são inerentes ao sistema. Destacou que os desequilíbrios não provêm do comportamento ou da irracionalidade dos indivíduos, nem obedecem à inadequação das instituições.
Marx demonstrou que o capitalismo está corroído por contradições singulares e distintas das prevalecentes em regimes anteriores. Essa compreensão permitiu-lhe transformar as críticas intuitivas numa impugnação coerente do capitalismo.
A ortodoxia neoclássica tentou refutar os seus questionamentos com toscos panegíricos do sistema. Concebeu insustentáveis fantasias de mercados perfeitos, de consumidores racionais e efeitos benévolos do investimento. Recorreu a uma acumulação de inverosímeis mitos, que contrastam com as aproximações realistas assumidas por Marx.
Os precursores do neoliberalismo não conseguiram desmentir o carácter intrínseco dos desequilíbrios capitalistas. Ensaiaram uma apresentação forçada dessas tensões como resultado de ingerências estatais, sem explicar por que razão o próprio sistema recria tantos desajustamentos.
Os critérios neoclássicos da maximização – complementados com as sofisticadas formalizações para solucionar alternativas – ignoram a lógica geral da economia. Reduzem a investigação nessa disciplina a um simples adestramento em exercícios de optimização.
O actual predicamento dessa abordagem não provém, pois, da sua solidez teórica. É assinalado pelas classes dominantes para difundir justificações dos atropelos aos assalariados. Instrumentalizam essas agressões alegando exigências naturais da economia. Sublinham, por exemplo, a impossibilidade de satisfazer as reclamações populares por restrições derivadas da escassez. Mas omitem o carácter relativo dessas limitações, apresentando-as como dados atemporais ou invariáveis.
A hostilidade dos neoclássicos a Marx contrasta com o reconhecimento exibido pela maioria da heterodoxia. Alguns autores dessa vertente, inclusive, procuraram a inclusão da economia marxista num campo comum de opositores da teoria neoclássica. Esta pretensão ilustra áreas de afinidade, mas esquece que a concepção forjada a partir de O Capital conforma um corpo contraposto à herança de Keynes.
A diferença principal entre ambas as visões radica na valoração do capitalismo. A heterodoxia aceita o carácter conflituoso do sistema, mas considera que essas tensões podem ser resolvidas através de uma adequada acção estatal.
Diferentemente, Marx postulou que essa intervenção só pospõe (e por fim agrava) os desequilíbrios que pretende resolver. Com este balizamento colocou as bases de uma tese de grande actualidade: a impossibilidade de forjar modelos de capitalismo humano, redistributivo ou regulado. Todo o pensamento marxista contemporâneo defende esta posição.
Mais-valia e superexplorados
Marx formulou substanciais observações para a compreensão da actual deterioração do salário. O modelo neoliberal generalizou essa retracção ao intensificar a concorrência internacional. A abertura comercial, a pressão por menores custos e o império da concorrência são utilizados para esmagar os recebimentos populares em todos os países. Os patrões recorrem à chantagem de relocalização das fábricas ou a deslocações efectivas da indústria para Oriente – para embaratecer a força de trabalho.
Esse atropelo obedece a crescentes taxas de exploração que exigem a acumulação. Marx esclareceu a lógica desta pressão quando distinguiu o trabalho da força de trabalho, quando separou o trabalho necessário dos excedentes e registou que porção da jornada laboral remunera efectivamente o dono da empresa.
Com essa exposição ilustra como actua a apropriação patronal do trabalho alheio. Apontou que essa confiscação fica mascarada pela inovadora coerção económica que impera sob o capitalismo. Diferentemente do escravo ou do vassalo, o assalariado é formalmente livre, mas está submetido às regras da sobrevivência impostas pelos seus opressores.
Marx fundamentou esta análise no seu descobrimento da mais-valia. Demonstrou que a exploração é uma necessidade do sistema. Mas também sublinhou que a queda do salário é um processo periódico e variável. Destacou que depende de processos objectivos (produtividade, base demográfica), conjunturais (ciclos de prosperidade ou de recessão) e subjectivos (intensidade e desenlace da luta de classes.
Esta caracterização permite compreender que o fundamento do atropelo neoliberal em curso é uma generalizada compulsão capitalista para elevar a taxa de mais-valia. Indica também que a intensidade e o alcance desta agressão são determinados pelas condições económicas sociais e políticas vigentes em cada país.
A teoria do salário de Marx situa-se nos antípodas das falácias neoclássicas de redistribuição do esforço do trabalhador. Também rejeita a ingenuidade heterodoxa de invariáveis melhorias acordadas na redistribuição dos recebimentos.
Mas é uma abordagem afastada de qualquer postulado de «miséria crescente». O teórico alemão nunca prognosticou o inexorável empobrecimento de todos os assalariados sob o capitalismo. A significativa melhoria do nível de vida popular corroborou essas prevenções.
Na etapa neoliberal o salário volta a cair pela necessidade cíclica com que o capitalismo se defronta de acrescentar a taxa de mais-valia, através de cortes nas remunerações dos trabalhadores.
Além disso, Marx apresentou um segundo tipo de caracterizações referidas aos desocupados da sua época, que tem especial interesse para a actual compreensão da exclusão. Este flagelo obedece a pressões da acumulação semelhantes às estudadas pelo pensador germânico, na sua avaliação da pauperização absoluta.
O intelectual europeu ficou muito abalado pelas terríveis consequências do desemprego estrutural. Ilustrou com violentas denúncias as condições inumanas de sobrevivência enfrentadas pelos empobrecidos. Esses retratos voltam a ter actualidade nos casos de perda definitiva do emprego e consequente degradação social. O que Marx investigou na sua descrição do «leprosário da classe operária» reaparece hoje no drama dos subjugados pela tragédia da subsistência.
O neoliberalismo alargou a pauperização a grande parte dos trabalhadores informais ou flexibilizados. Esses segmentos suportam não só situações de sujeição laboral extrema, taylorização ou desclassificação, mas também remunerações do salário muito abaixo do valor da força de trabalho.
Nas últimas décadas esse tormento não impera apenas na periferia. A precarização estendeu-se a todos os cantos do planeta e verifica-se nos diversos centros. O nível dos salários continua a diferir de forma significativa nos diversos países, mas a exploração redobrada verifica-se em numerosas regiões. É um sofrimento agudo no centro e dramático na periferia. O que Marx observava entre os desocupados da sua época também açoita actualmente grande parte dos precarizados de todas as latitudes.
Desigualdade e acumulação
As ideias expostas pelo autor de O Capital permitem interpretar a explosão de desigualdade recentemente medida por Pikety. Os dados são angustiantes. Um punhado de 62 bilionários tem o mesmo montão de recursos que 3.600 milhões de indivíduos. Enquanto se desmorona a segurança social, expande-se a pobreza, os magnatas desfinanciam os sistemas de previsão, escondendo as suas fortunas em paraísos fiscais.
A desigualdade não é o fenómeno passageiro que descrevem os teóricos ortodoxos. Os expoentes mais realistas (ou cínicos) dessa corrente explicitam a conveniência da iniquidade para reforçar a submissão dos assalariados.
A fractura social actual é frequentemente atribuída à preeminência de modelos económicos regressivos. Mas Marx demonstrou que a desigualdade é inerente ao capitalismo. Sob esse sistema as diferenças de recursos variam em cada etapa, diferem significativamente entre países e estão condicionadas pelas conquistas populares ou a correlação de forças entre opressores e oprimidos. Em todos os casos o capitalismo tende a recriar e a alargar as brechas sociais.
Marx atribuiu essa reprodução da desigualdade à dinâmica de um sistema assente nos lucros derivados da mais-valia extraída dos trabalhadores. O Capital sublinha esse traço na polémica com outras interpretações do lucro, centradas na astúcia do comerciante. Também objecta as caracterizações que sublinham as retribuições à contribuição do empresário, sem especificar em que consiste essa contribuição.
Os neoclássicos nunca conseguiram refutar essas posições, com a sua apresentação do lucro como um prémio à abstenção do consumo ou ao aforro individual. Mais insatisfatórias foram as suas caracterizações de retribuições a um inanimado «factor capital» ou a pagamentos das funções de gerente separadas da propriedade da empresa.
Idênticos desacertos cometeram os keynesianos ao interpretar o lucro como uma contraprestação do risco ou da inovação. Os pensadores mais contemporâneos dessa escola optaram por desviar o olhar de qualquer referência à origem do lucro.
Outros teóricos reconhecem a iniquidade do sistema, mas reduzem a origem da desigualdade a anomalias na distribuição dos recursos, devido a favoritismos ou políticas erradas. Nunca ligam esses processos com a dinâmica do capitalismo.
As caracterizações convencionais do lucro são mais insustentáveis no século XXI que no tempo de Marx. Ninguém pode explicar com critérios normais as monumentais fortunas acumuladas pelo 1% dos bilionários globais. Esses lucros, sem justificações de qualquer índole, são hoje mais naturais que no passado.
As críticas hoje em voga ao enriquecimento, no máximo, questionam os escandalosos lucros dos banqueiros. Em contrapartida, ponderam os lucros surgidos da produção sem avaliar as ligações entre ambas as formas de rentabilidade.
A releitura de O Capital permite recordar que a fatia obtida pelos banqueiros constitui, apenas, uma porção da massa total dos lucros criada com a exploração dos trabalhadores.
Marx analisou também as formas violentas que, em certas circunstâncias assume a captura de lucros. Avaliou essa tendência em estudos da acumulação primitiva, que foram utilizados pelos teóricos da acumulação como despossessão (Harvey).
Em O Capital investigou as formas coercivas que apresentou a apropriação de recursos na génesis do capitalismo. Mas o sistema continuou a recriar essas exacções em diferentes situações do século e meio posterior.
As guerras do Médio Oriente, os saques em África ou as expropriações dos camponeses na Ásia ilustram diferentes modalidades recentes dessa sucção.
Marx inaugurou o estudo de formas excepcionais da confiscação do trabalho alheio. Essa investigação assentou as bases para a clarificar a dinâmica contemporânea da inflação ou da deflação.
Tal como os seus precursores clássicos, Marx postulou uma determinação objectiva dos preços em função do seu valor. Precisou que essa magnitude fica estabelecida pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção dos bens, em convulsivos processos de extracção de mais-valia e realização de valor.
Essa caracterização não só permite refutar a ingénua apresentação neoclássica dos preços como reflexos da utilidade pessoal, ou como espontâneos emergentes da oferta e da procura. Desmonta também a absurda imagem do capitalista como vítima de escaladas inflacionárias ou deflacionárias, alheias à sua conduta.
Nas conjunturas críticas, a determinação turbulenta dos preços reproduz lucros extraordinários aos grandes patrões, através de abruptas desvalorizações do salário. Esses mecanismos operam actualmente com a mesma intensidade que as expropriações violentas da época de Marx.
O Capital facilitou a identificação posterior de quem são os artífices e os beneficiários do nível que os preços assumem. Essa caracterização não se limita a retratar situações de «luta distributiva». Sublinha a desigualdade de condições em que os trabalhadores disputam com os patrões e ressalta a consequente dominação que exercem os formadores de preços.
Desemprego e inovação
A actual massificação do desemprego constitui outra razão para ler Marx. Alguns pensadores neoclássicos assumem essa calamidade com um simples dado. Outros trombeteiam conselhos sobre a potencialidade futura dos serviços, para compensar a queda do emprego industrial. Em nenhum país essas previsões foram corroboradas.
Muitos analistas afirmam que a educação resolverá o problema. Mas esquecem-se de mencionar o crescente número de desocupados com títulos universitários. A destruição de postos de trabalho afecta já severamente os segmentos mais qualificados.
Diferentes medições começaram a registar que no modelo actual o desemprego não se reduz nas fases expansivas, em proporção equivalente ao seu incremento nos períodos recessivos. Este flagelo aumenta com a elevada rotação do capital e a vertiginosa redução dos gastos administrativos.
A revolução digital é invariavelmente mencionada como a causa principal de esta crescente perda de postos de trabalho. Mas os computadores são culpabilizados, omitindo os que definem a sua utilização. Esquece-se que esses instrumentos nunca atuam por si-mesmos. São geridos por capitalistas que multiplicam os seus lucros substituindo mão-de-obra. A informática e a automatização não destroem o emprego espontaneamente. A rentabilidade empresarial é que provoca essa demolição.
O Capital introduziu os principais fundamentos desta caracterização da mudança tecnológica. Marx afirmou que as inovações são incorporadas para incrementar a taxa de exploração que alimenta o lucro patronal.
A revolução informática em curso ajusta-se totalmente a este postulado. É um recurso utilizado pelas grandes empresas para potenciar a captura do novo valor gerado pelos assalariados.
Tal como ocorreu no passado com o vapor, o caminho-de-ferro, a electricidade ou os plásticos, a digitalização introduz transformações radicais na actividade produtiva, comercial e financeira. Embaratece o transporte e as comunicações e modifica completamente aos procedimentos de fabricação ou venda das mercadorias.
Um indício desta mutação é a influência alcançada pelos «senhores das nuvens». Sete das dez empresas com maior capitalização bolsista actual pertencem ao sector das novas tecnologias da informação. Há uma década e meia as firmas com mais capacidade financeira eram petrolíferas, industriais ou automotrizes. Hoje são a Google, Amazon, Facebook ou Twitter.
Esta irrupção suscita presságios felizes entre os pensadores que ocultam as consequências da gestão capitalista da informática. Omitem por exemplo, que a massificação da comunicação digital reforçou a privatização do espaço virtual. Esse é controlado por poucas empresas privadas estreitamente associadas ao Pentágono. O Capital permite entender as determinantes capitalistas deste perfil da inovação.
Marx iniciou a indagação da tecnologia como fenómeno social, abrindo um caminho dos estudos que floresceu nas últimas décadas. Mas diferentemente dos teóricos evolucionistas e schumpeterianos demonstrou que a alteração tecnológica desestabiliza a acumulação e potencia a crise.
A inovação guiada por princípios de lucro impõe uma encarniçada concorrência que multiplica a sobreprodução. Além disso, induz a hierarquizar o desenvolvimento de ramos tão destrutivos como a indústria militar.
Marx explicou por que razão o actual sistema impede uma gestão social proveitosa das novas tecnologias. Assinalou que essa gestão social requeria citérios de cooperação opostos aos princípios da rentabilidade. As potencialidades da informatização como instrumento de bem-estar e solidariedade só emergirão numa sociedade emancipada do capitalismo.
Multiplicidade de crises
Actualmente, Marx suscita um interesse especial pelos critérios que enunciou para interpretar as crises. O neoliberalismo não provoca apenas crescentes sofrimentos. Cada quinquénio ou decénio desencadeia convulsões que abalam a economia mundial. Essas perturbações induzem o estudo de O Capital.
As crises do último período incluíram a bolha japonesa (1993) a eclosão do Sudeste asiático (1997), o desabar da Rússia (1998), o desmoronamento das empresas ponto.com (2000) e o descalabro da Argentina (2001). Mas a magnitude e o alcance geográfico do abanão global de 2008 superaram amplamente aqueles antecedentes. O seu impacte obrigou à revisão das teorias económicas.
As recentes crises são efeitos directos da nova etapa de privatizações, de abertura comercial e flexibilidade laboral. Não são prolongamentos de tensões irresolutas dos anos 70. Emergiram no calor dos desequilíbrios peculiares do neoliberalismo.
Esse modelo erodiu os diques que morigeravam os desajustamentos do sistema. Por isso, o actual capitalismo atua com graus de instabilidade muito superiores aos do passado.
Os neoclássicos atribuíram a crise de 2008 a desacertos dos governos ou à irresponsabilidade dos devedores. Reduziram todos os problemas a comportamentos individuais, culpabilizaram as vítimas e apanharam os responsáveis. Além disso, ainda justificaram os socorros estatais aos bancos, silenciando que essas ajudas contrariam todas as suas prédicas a favor da concorrência e do risco.
Os heterodoxos explicaram as mesmas convulsões pelo descontrolo do risco. Esqueceram que essas supervisões são periodicamente socavadas pelas rivalidades entre empresas e bancos. As normas que protegem os negócios das classes dominantes são violadas pela própria continuidade da acumulação.
A releitura de O Capital permite superar essas inconsistências da economia convencional. Induz a investigação da origem sistémica desses rebentamentos. Oferece pistas para indagar os diversos mecanismos da crise, recordando que o capitalismo desencadeia uma ampla gama de contradições.
O cimento comum desses desequilíbrios é a geração periódica de excedentes invendáveis. Mas essa sobreprodução desenvolve-se por vários caminhos complementares.
Marx salientou a existência de tensões entre a produção e o consumo, derivadas da estratificação de classes da sociedade. Essa caracterização tem grande aplicação no panorama de agudos problemas de realização do valor das mercadorias, provocado pelo neoliberalismo.
Esse modelo provoca uma ampliação dos consumos sem permitir o seu desfrute. Expande a produção ao mesmo tempo que diminui os recebimentos populares e precipita crises derivadas da deterioração do poder de aquisição. O enorme crescimento do endividamento familiar não atenua a vulnerabilidade da procura.
Marx foi o primeiro a mostrar como a concorrência obriga os empresários a desenvolverem duas tendências opostas: por um lado ampliam as vendas e por outro reduzem os custos salariais. Esta contradição apresenta envergaduras e localizações muito diferentes em cada época.
Actualmente, o neoliberalismo estimula o consumismo e a riqueza patrimonial financiada com o endividamento nas economias centrais. Ao mesmo tempo impõe brutais retracções do poder de compra nos países periféricos.
O Capital também releva os problemas da valorização. Indaga como atua a tendência decrescente da taxa de lucro. Demonstra que o aumento do investimento produz um declínio percentual do lucro, ao ritmo da própria expansão da acumulação. O trabalho vivo que alimenta a mais-valia, decai proporcionalmente com o incremento da produtividade imposta pela concorrência.
Marx salientou que as crises emergem do crescimento capitalista. Não são efeitos ocasionais do desperdício ou do uso inadequado dos recursos. Explicou, além disso, como o sistema primeiro compensa, para depois agravar a queda periódica da taxa de lucro.
Esta tese permite compreender de que forma o neoliberalismo incrementou a taxa de mais-valia, reduziu os salários e embarateceu os factores de produção para contrariar o declive do nível de rentabilidade. Também ilustrou como o próprio problema reaparece no fim dessa cirurgia. A contradição descoberta por Marx, actualmente, verifica-se nas economias mais capitalizadas que sofrem desajustamentos de sobre-investimento.
A apresentação combinada e em termos marxistas dos desequilíbrios de realização e valorização em termos marxistas é muito pertinente, para compreender a heterogeneidade da mundialização neoliberal. Indica que contradições de ambos os tipos irrompem nos diferentes polos desse modelo, e como minam a sua estabilidade, a partir dos flancos complementares.
Finanças e produção
Marx sublinhou sempre os determinantes produtivos das crises capitalistas. Na época das enormes transformações provocadas pela globalização, esse sublinhado permite evitar leituras simplistas de carácter puramente financeiro.
Os grandes capitais deslocam-se actualmente de uma actividade especulativa para outra, em situações de alta desregulação, que acrescentam explosões de liquidez. Além disso, a gestão das empresas potencia os desajustamentos creditícios, a instabilidade cambial e a volatilidade bolsista.
Esse processo multiplica as tensões suscitadas pelos novos mecanismos de titularização, de derivados e alavancagens. É evidente que o neoliberalismo abriu as comportas a um grande festim de especulação.
Mas, há já 150 anos, que Marx demonstrou que essas tresloucadas apostas são próprias do capitalismo. A especulação é uma actividade constitutiva, não é uma opcional do sistema. Nas últimas três décadas alcançou dimensões desmedidas, mas não constitui um traço característico do actual modelo.
Esta precisão permite observar as conexões entre desequilíbrios financeiros e produtivos salientados em O Capital.
Seguindo esta pista, pode notar-se que a actual hegemonia das finanças constitui apenas um aspecto da reestruturação em curso. Não é um dado estrutural do capitalismo contemporâneo. A classe dominante utiliza o instrumento financeiro para recompor a taxa de lucro, através de uma maior apropriação de mais-valias.
Além disso, a globalização financeira está ligada com o avanço da internacionalização produtiva. A multiplicidade de títulos em circulação varia de acordo com uma gestão mais complexa do risco. Permite administrar actividades fabris ou comerciais mundializadas e sujeitas aos inesperados vaivéns dos mercados.
Também a expansão do capital fictício está ligada a estas condicionantes, e evolui de acordo com os movimentos do capital-dinheiro. Aprovisiona a produção e intermedeia a circulação das mercadorias.
Estas conexões explicam a persistência da globalização financeira depois da crise de 2008. Os capitais continuam fluindo de um país para o outro com a mesma velocidade e liberdade de circulação, para lubrificar o funcionamento das estruturas capitalistas mais internacionalizadas.
É verdade que todas as tentativas de reintroduzir controlos aos bancos falharam pela resistência dos financeiros. Mas essa capacidade de veto ilustra quão emaranhado com o universo produtivo está o mundo do dinheiro. São as duas caras de um mesmo processo de internacionalização.
O Capital aporta numerosas observações da dinâmica financeira que explicam essas ligações, a partir de uma interpretação muito original da lógica do dinheiro. Destaca o papel insubstituível da moeda na intermediação de todo o processo de reprodução do capital. Reafirma que as diferentes funções do dinheiro em circulação, o entesouramento ou a dispersão dos meios de pagamento, estão sujeitos à mesma lógica objectiva, que regula todo o desenvolvimento das mercadorias.
Esse papel apresentou nos diversos regimes de regulação monetária modalidades muito diferentes. O padrão ouro do século XIX diverge claramente das paridades atuais, administradas pelos bancos centrais. Mas em todos os casos dirige um caminho, determinado pela dinâmica da acumulação, da concorrência e da mais-valia.
O Capital contribui para recordar estes fundamentos, não só em contraposição aos mitos ortodoxos da transparência mercantil, à optimização da atribuição de recursos ou à vigência das moedas exógenas, neutrais e passivas.
Também releva as ingenuidades heterodoxas. Marx não apresentou a moeda como uma simples representação simbólica, um mecanismo convencional ou um instrumento moldado ao quadro institucional. Explicou o seu papel necessário e peculiar na metamorfose que o capital desenvolve, para consumar a sua passagem pelos circuitos comerciais, produtivos e financeiros.
Economia mundial e nacional
A centralidade que tem O Capital para a compreensão da dinâmica contemporânea dos salários, da desigualdade, do desemprego ou da crise deveria levar a uma revisão geral das suas contribuições para a teoria económica. Seria muito oportuno actualizar, por exemplo, o estudo das controvérsias suscitadas pelo livro que Mandel fez no centenário da primeira edição de O Capital.
A obra do pensador germânico não esclarece apenas o sentido das categorias básicas da economia. Também sugere linhas de investigação para compreender a mundialização em curso. Marx nunca chegou a escrever o tomo que preparava sobre a economia internacional, mas esboçou as ideias-chave para entender a lógica globalizadora do sistema.
No século XXI, estes princípios são muito relevantes. O capitalismo funciona na actualidade ao serviço de gigantescas empresas transnacionais, que corporizam o salto verificado na internacionalização. A produção Wal-Mart é maior que as vendas de uma centena de países, a dimensão económica da Mitsubishi transborda o nível de actividade da Indonésia e a General Motors supera a escala da Dinamarca.
As firmas globalizadas diversificaram processos de fabricação em cadeias de valor e mercadorias «feitas no mundo». Desenvolvem todos os seus projectos produtivos em função das vantagens que oferece cada localidade, seja esta em matéria de salários, de subsídios ou disponibilidade de recursos.
A expansão dos tratados de livre-comércio adapta-se a esta mutação. As companhias necessitam de baixos direitos aduaneiros e liberdade de movimentos para concretizar as transacções entre as suas firmas associadas. Por isso impõem convénios que consagram a supremacia das empresas em qualquer litígio judicial. Em certas áreas como a genética, a saúde ou o meio-ambiente, aqueles pleitos são decisivos.
Uma releitura de O Capital permite superar dois erros muito correntes na interpretação da internacionalização em curso. Um equívoco supõe que o capitalismo actual se rege pelos mesmos padrões de preeminência nacional que o regiam nos séculos XIX ou XX. O desacerto oposto considera que o sistema se globalizou por completo, eliminando as barreiras nacionais, dissolvendo o papel dos estados e forjando classes dominantes totalmente transnacionalizadas.
Marx escreveu a sua principal obra numa etapa da formação do capitalismo, uma etapa muito diferente da actual. Mas conceptualizou acertadamente como operam as tendências para a mundialização, no quadro dos estados e das economias nacionais. Mudou a proporção e a relevância comparativa dessa mistura, mas vigência dessa combinação mantém-se.
O Capital melhorou as ideias expostas no Manifesto Comunista sobre o carácter internacional da expansão burguesa. No primeiro ensaio, Marx retratou a criação do mercado mundial, a pujança do cosmopolitismo económico e a veloz universalização das regras mercantis. No seu livro de maturidade precisou as formas que assumiam essas tendências e remarcou o seu enlace com os mecanismos nacionais do ciclo e da acumulação.
Marx ajustou o seu olhar sobre a internacionalização objectando as teses ricardinas das «vantagens comparativas». Ressaltou o carácter estrutural da desigualdade imperante no comércio internacional. Por isso rejeitou todas as expectativas de convergência harmoniosa entre países e as visões de modulação natural às condições dos concorrentes.
Esta abordagem permitiu-lhe notar a vigência de remunerações internacionais mais elevadas para os trabalhos de maior produtividade. No início do capitalismo Marx percebeu alguns fundamentos de explicações posteriores da falha em termos de intercâmbio.
O teórico germânico observou a sequela dos desajustamentos provocados pelo transbordo capitalista das fronteiras nacionais. Registou como esse processo provoca crescentes fracturas à escala global.
Por isso, O Capital investigou essa dinâmica em cenários nacionais muito específicos. Investigou a evolução dos salários, dos preços ou do investimento em economias particulares. Pontualmente, detalhou essa dinâmica no desenvolvimento industrial de Inglaterra.
A leitura de Marx convida, pois, a avaliar a mundialização actual como um curso preeminente, que coexiste com o continuado desenvolvimento nacional da acumulação. Sugere que ambos os processos operam de forma simultânea.
Polaridades com novo raciocínio
O Capital é muito útil para analisar a lógica da relação centro-periferia, subjacente à actual quebra global. Marx antecipou certas ideias sobre essa divisão nas suas observações sobre o desenvolvimento geral do capitalismo.
A princípio supunha que os países atrasados repetiriam a industrialização do Ocidente. Pensava que o capitalismo se expandia derrubando muralhas, criando um sistema mundial interdependente.
Expôs essa ideia no Manifesto Comunista. Aí descreveu como a China e a Índia seriam modernizadas com o caminho-de-ferro e a importação de têxteis britânicos. Marx realçava a dinâmica objectiva do desenvolvimento capitalista, e considerava que as estruturas precedentes seriam absorvidas pelo avanço das forças produtivas.
Mas ao redigir O Capital começou a perceber tendências opostas. Notou que a principal potência se modernizava alargando as distâncias em relação ao resto do mundo. Esta aproximação firmou-se com a sua percepção do que ocorreu na Irlanda. Ficou impressionado pela forma como a burguesia inglesa abafava o surgimento de manufactureiras na ilha para garantir o predomínio das suas exportações. Além disso, notou como ela se abastecia de força de trabalho barata para limitar a melhoria dos assalariados britânicos.
Nesta investigação intuiu que a acumulação primitiva não antecipa processos de pujante industrialização nos países submetidos ao jugo colonial. Este registo definiu as bases para a crítica posterior às expectativas de simples arrasto da periferia pelo centro. Com este fundamento se conceptualizou posteriormente a lógica do subdesenvolvimento.
Marx não expôs uma teoria do colonialismo, nem uma interpretação da relação centro-periferia. Mas deixou uma sementeira de observações para a compreensão da polarização global, que retomaram os seus sucessores e os teóricos da dependência.
Esta linha de trabalho é muito relevante para ver como actualmente o neoliberalismo multiplica as fracturas globais. Nas últimas três décadas ampliaram-se todas as fracturas que empobrecem a periferia inferior. Essa degradação intensificou-se com a consolidação do agro-negócio, o endividamento externo e o avassalamento dos recursos naturais dos países dependentes. Estas confiscações assumiram modalidades muito sangrentas em África e no mundo árabe.
As observações de Marx incluíram também um registo de diversidades no centro. Intuiu que o início industrial britânico não seria copiado em França, e notou a presença de novos caminhos de crescimento, misturados com servidão (Rússia) ou esclavagismo (Estados Unidos).
O autor de O Capital captou estas tendências amadurecendo uma alteração do paradigma conceptual. Nos seus trabalhos mais completos substituiu a primeira abordagem linear – assente no comportamento das forças produtivas – por uma outra multilinear, centrada no papel transformador dos sujeitos.
Com esta última abordagem, a rígida cronologia de periferias moldadas à modernização foi substituída por novas visões, que reconhecem a variedade do desenvolvimento histórico.
Esta metodologia de análise é importante para notar a especificidade das formações intermédias, que irromperam de forma persistente em diferentes períodos dos últimos centena e meia de anos. Com essa óptica pode-se avaliar a dinâmica de acelerados processos de crescimento contemporâneo (China), em etapas de grande reorganização do sistema (neoliberalismo).
Antecipações de anti-imperialismo
Marx estudou a economia do capitalismo para notar o seu efeito sobre a luta de classes que socava o sistema. Por isso investigou os processos políticos revolucionários à escala internacional.
Seguiu com interesse especial o curso das rebeliões populares da China, Índia e, sobretudo, da Irlanda, tendo intuído daí a importância dos nexos entre as lutas nacionais e sociais. Por isso promoveu a adesão dos operários britânicos à revolta da ilha contígua, tendo-se oposto às divisões que imperavam entre os oprimidos de ambos os países.
A partir dessa experiência, Marx já não concebeu a independência da Irlanda como uma consequência das vitórias proletárias em Inglaterra. Sugeriu uma junção entre ambos os processos, e transformou o seu internacionalismo cosmopolita inicial na defesa de uma confluência da resistência anticolonial com as lutas nas economias centrais.
Na sua etapa do Manifesto, o revolucionário alemão propagava denúncias anticoloniais de alta voltagem. Não se limitava a descobrir a destruição das formas económicas pré-capitalistas. Questionava de viva voz as atrocidades das grandes potências.
Mas nesses trabalhos juvenis Marx supunha que a generalização do capitalismo aceleraria a erradicação ulterior desse sistema. Defendia um internacionalismo proletário muito básico, aparentado com as velhas utopias universalistas.
Posteriormente, Marx ressaltou o efeito positivo das revoluções na periferia. Esses ensinamentos foram retomados pelos seus discípulos do século XX, para indicar a existência de uma contraposição entre potências opressoras e nações oprimidas e defender a convergência das batalhas nacionais e sociais. Dessas caracterizações surgiram as estratégias de aliança dos assalariados metropolitanos com os despossuídos do mundo colonial.
Com este fundamento, forjou também a síntese do socialismo com o anti-imperialismo, desenvolvida pelos teóricos do marxismo latino-americano. Essa conexão induziu as convergências da esquerda regional com o nacionalismo revolucionário, para enfrentar o imperialismo estado-unidense. Esta junção inspirou a revolução cubana e foi retomada pelo processo bolivariano.
Numa conjuntura marcada pelas agressões de Trump, esse acervo de experiências readquire importância. Os atropelos do magnata induzem a revitalização das tradições anti-imperialistas, especialmente em países tão espezinhados como o México. Ali ressurge a memória de resistências aos avassalamentos perpetrados pelos Estados Unidos.
Marx observava como as grandes humilhações nacionais desencadeiam processos revolucionários. O que ele percebeu no século XIX volta a gravitar na actualidade.
Adversidades e ideologia
Marx tinha de lidar com momentos de isolamento, refluxo da luta popular e a consolidação do domínio burguês. A escrita de várias partes de O Capital coincidiu com essas circunstâncias. Enfrentou a mesma adversidade que prevalece actualmente nas conjunturas de estabilização do neoliberalismo.
Nesse tipo de situações, o pensador alemão investigou como a classe dominante domina. Conceptualizou o papel da ideologia no exercício dessa supremacia. No estudo do fetichismo da mercadoria que tratou em O Capital há várias referências a esta problemática.
É importante retomar essas considerações para observar como funcionou o neoliberalismo nas últimas décadas. Os artífices do modelo actual transmitem fantasias de sabedoria dos mercados e ilusões de prosperidade espontânea. Pressagiam derrames de lucros e recriam numerosas mitologias do individualismo.
Com essa bateria de falsas expectativas, propagam uma influente ideologia em todos os sentidos do termo. Marx destacou essa variedade de facetas das crenças propaladas pelos dominadores para tornar natural a sua opressão.
O credo neoliberal fornece todos os argumentos utilizados pelo establishment para justificar a sua primazia. Ainda que o grau de penetração dessas ideias seja muito variável, salta à vista a sua incidência na subjectividade de todos os indivíduos. Mas tal como no tempo de Marx, o capitalismo reproduz-se também através do medo. O sistema transmite crenças sobre um futuro venturoso e ao mesmo tempo generaliza o pânico perante esse provir. O neoliberalismo multiplicou especialmente a angústia do desemprego, a humilhação perante a flexibilidade laboral e a desesperança face à fractura social.
Esses temores são transmitidos pelos grandes meios de comunicação com sofisticados disfarces e variados enganos. Não configuram apenas o sentido comum imperante na sociedade. Atuam como fábricas de propagação de todos os valores conservadores.
Os meios de comunicação complementam (ou substituem) as velhas instituições escolares, militares ou eclesiásticas na sustentação da ordem burguesa. A imprensa escrita, os meios audiovisuais e as redes sociais ocupam um espaço inimaginável no século XIX. Expandem as ilusões e os temores que sustentam politicamente a hegemonia do neoliberalismo.
Mas esses mecanismos ficaram seriamente abalados pela perda de legitimidade provocado pelo descontentamento popular. Trump, o Brexit e a ascensão de partidos reaccionários na Europa ilustram como esse mal-estar pode ser capturado pela direita. Face a este tipo de situações Marx forjou uma perdurável tradição de conceber alternativas, combinando a resistência com a compreensão da conjuntura.
Projecto socialista
Marx participou activamente nos movimentos revolucionários que debatiam as ideias do socialismo e do comunismo. Manteve essa intensa intervenção enquanto escrevia O Capital. Nunca detalhou o seu modelo de sociedade futura, mas expôs as bases desse porvir.
O acérrimo crítico da opressão alentava a criação de regimes económicos assentes na expansão da propriedade pública. Também promovia a criação de regimes políticos assentes na auto-administração popular.
Marx apostava num início breve desses sistemas na Europa. Percebeu na Comuna de Paris uma antecipação do seu projecto. Concebia o início dessa transformação revolucionária no Velho Continente e imaginava uma propagação ulterior a todo o planeta.
É sabido que a história seguiu uma trajectória muito diferente. O triunfo bolchevique de 1917 inaugurou a sequência de grandes vitórias populares do século XX. Esses avanços incluíram tentativas de construção socialista em várias regiões da periferia.
As classes dominantes ficaram aterrorizadas, e fizeram concessões inéditas para conter a pujança dos movimentos anticapitalistas. Nos anos 70-80 os emblemas do socialismo eram tão populares, que se tornava impossível contar quantos partidos e movimentos reivindicavam essa denominação.
Mas também é conhecido o que aconteceu posteriormente. O derrube da União Soviética deu lugar a um prolongado período de reacção contra o igualitarismo, que actualmente ainda persiste.
Este panorama foi alterado pela resistência popular e o declive do modelo político-ideológico da globalização neoliberal. Nestas circunstâncias, a releitura de O Capital converge com redescobrimentos do projecto socialista. Os jovens já não carregam os traumas da geração anterior, nem, as frustrações que pavimentaram a queda da URSS.
A própria experiência de luta é ensinadora. Muitos activistas compreendem que a conquista da democracia efectiva e a igualdade real exige que seja forjado um outro sistema social. Perante o sofrimento provocado pelo capitalismo, intuem a necessidade de construir um horizonte de emancipação.
A chegada de Trump incorpora novos ingredientes nesta batalha. O abastado presidente tenta recuperar pela força a primazia dos Estados Unidos. Pretende reforçar a primazia de Wall Street e a preeminência do lobby petrolífero, reactivando o unilateralismo bélico.
Não só proclama que os Estados Unidos devem alistar-se para ganhar as guerras. Já iniciou o seu programa militarista com bombardeamentos na Síria e Afeganistão. Além disso, exige uma subordinação do Velho Continente que socava a continuidade da União Europeia. Trump não se limita a construir o muro na fronteira mexicana. Acelera a expulsão de imigrantes, incentiva golpes de direita na Venezuela e ameaça Cuba.
Nesta convulsa conjuntura Marx retoma actualidade. Os seus textos não trazem apenas um guia para a compreensão da economia contemporânea. Também oferecem ideias para a acção política, à volta de três eixos primordiais do momento: reforçar a resistência anti-imperialista, multiplicar a batalha ideológica contra o neoliberalismo e garantir a centralidade do projecto socialista.
Atitudes e compromissos
As teorias que Marx introduziu revolucionaram todos os parâmetros da reflexão e transformaram as bases do pensamento social. Mas o teórico alemão salientou-se também como um grande lutador. Desenvolveu um tipo de vida que actualmente identificaríamos com militância.
Marx colocou-se na bancada dos oprimidos. Reconheceu os interesses sociais em jogo e rejeitou a atitude do observador neutral. Participou de forma decidida na acção revolucionária.
Este posicionamento orientou o seu trabalho para os problemas da classe trabalhadora. Promoveu a conquista dos direitos sociais com os olhos postos no forjar uma sociedade liberta da exploração.
Marx propiciou uma estreita confluência da elaboração teórica com a prática política. Inaugurou um modelo de fusão do intelectual, do economista e do socialista que foi retomado por inúmeros pensadores.
Com essa postura evitou desacertos: o refúgio académico afastado do compromisso político e do deslumbramento pragmático pela acção. Com ele chegou uma dupla mensagem de intervenção na luta e trabalho intelectual para compreender a sociedade contemporânea. Continuar por esse caminho é a melhor homenagem aos 150 anos de O Capital.
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6-5-2017
* Claudio Katz é economista, Professor da Universidade de Buenos Aires, é investigador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET) e membro dos Economistas de Esquerda (EDI, na sua sigla em castelhano).
Este texto foi originalmente publicado em http://katz.lahaine.org/?p=296
Tradução de José Paulo Gascão