Seja como for é de embrulhar o estômago de Pequim ter de assistir ao atual imprevisível impasse entre sauditas e qataris. Não há solução à vista, e cenários possíveis plausíveis incluem até mudança de regime e alteração geopolítica de proporções sísmicas no Sudoeste da Ásia – que visão ocidente-cêntrica chama de Oriente Médio.
E sangue nas trilhas no Sudoeste da Ásia só significa problemas ainda maiores à frente para as Novas Rotas da Sede, agora sob nova denominação de Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE [ing. Belt and Road Initiative, BRI].
Quando disse oficialmente que "Decidi (...) que é chegada a hora de exigir que o Qatar pare de financiar [o terrorismo]", o presidente Trump apenas assumiu como seus os créditos pela excomunhão orquestrada de Doha, resultado daquela já famosa dança das espadas Riad.
O alto staff de Trump contudo continua a afirmar que o Qatar jamais participou de discussões com os sauditas. O secretário de Estado Rex Tillerson, ex-presidente da Exxon-Mobil e conhecido agente operativo no Oriente Médio, fez o que pôde para diluir o drama – sabendo que não haveria razão para que o Qatar continuasse a abrigar em seu território a Base Aérea Al Udeid e o Centcom, para potência hostil.
Entrementes, a Rússia – entidade maligna preferida dentro do governo dos EUA – vai-se aproximando mais e mais do Qatar, desde a aquisição, que tudo mudou no início de dezembro, pela Autoridade Qatari para Investimentos, AQI [ing. Qatar Investment Authority, QIA] de 19,5% da gigante coroada de energia, Rosneft.
Esse movimento traduz-se como uma aliança econômico/política entre os dois maiores exportadores de gás do planeta; e explica por que Doha – que oficialmente ainda tem gabinete permanente no quartel-general da OTAN – repentinamente jogou debaixo do ônibus (econômico) os seus "rebeldes moderados" na Síria.
Rússia e China são unidas numa parceria estratégica complexa, de vários vetores. Pequim, privilegiando interesses econômicos, assume visão pragmática e jamais se inclina na direção de desempenhar papel político. Como maior produtor e exportador de manufaturas, o lema de Pequim é absolutamente claro: Faça comércio, Não Faça guerra.
Mas e se o Sudoeste Asiático vir-se em futuro próximo atolado em perenes relações de pré-guerra por todos os lados?
Irã, o melhor amigo da China e da ICE
China é a principal parceira comercial do Qatar. Pequim estava negociando ativamente um acordo de livre comércio com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), antes dos atuais desentendimentos. Mais alguns passos à frente, cenário possível é até que o Qatar saia do CCG.
O Qatar é também a segunda maior fonte de gás natural liquefeito (GNL) para a China, e a Arábia Saudita é a terceira maior fonte de petróleo para a China. Desde 2010 a China está à frente dos EUA como maior exportador para o Sudoeste da Ásia, ao mesmo tempo em que firma a própria posição como maior importador de energia do Sudoeste da Ásia.
Recentemente, quando o rei Salman visitou Pequim, a Casa de Saud pôs-se a falar, em êxtase, de uma "parceria estratégica sino-saudita" baseada nem contratos assinados no total de $65 bilhões. A parceria, na verdade, baseia-se num acordo de cooperação em segurança, de cinco anos, entre Arábia Saudita e China, que inclui exercícios conjuntos de contraterrorismo e militares. Muito terá a ver com manter livre de qualquer tumulto político o lucrativo corredor Mar Vermelho-Golfo de Áden.
Claro, haverá quem faça cara de desagrado porque o wahhabismo saudita é a matriz ideológica do jihadismo salafista que ameaça não só o Sudoeste da Ásia e o ocidente, mas também a própria China.
As Novas Rotas da Seda, hoje ICE, implicam papel chave para o CCG – num investimento mútuo, marca registrada do modo chinês de "ganha-ganha". Num mundo ideal, a "Visão 2030" dos sauditas, de modernização, que o príncipe guerreiro Mohammed Bin Salman (MBS) vende praticamente sem pausa para respirar, poderia, em teoria, até conquistar o interesse do jihadismo salafista do tipo Daech por todo o Sudoeste da Ásia.
O que o príncipe MBS, iranofóbico, parece não compreender é que Pequim realmente privilegia o seu relacionamento econômico baseado na Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE, com Teerã.
No início do ano passado, quando o presidente Xi Jinping visitou Teerã, ele e o presidente Rouhani prometeram elevar o comércio bilateral China-Irã para colossais $600 bilhões em dez anos, praticamente todo o aumento relacionado à expansão da ICE.
China e Irã estão envolvidos em negócios sérios. Já há mais de um ano, trens de carga diretos entre China e Irã atravessam a Ásia Central em apenas 12 dias. E é só um aperitivo, antes da conexão completa por ferrovias de alta velocidade que cobrirão todo o arco da China à Turquia, via Irã, no início dos anos 2020s.
E em futuro distante (talvez nem tanto), uma Síria pacificada também será configurada como um dos nodos da Iniciativa Cinturão Estrada; antes da guerra, mercadores sírios eram figura de destaque no comércio de itens pequenos na Rota da Seda que vai do Levante a Yiwu na China ocidental.
ICE tem a ver com Turquia, Egito e Israel
A Rota Marítima da Seda chinesa nada tem a ver com algum "colar de pérolas" [de bases militares] ameaçador –, mas com infraestrutura de portos, construídos por empresas chinesas, que configuram pontos de parada chaves ao longo da ICE, do Oceano Índico via o Mar Vermelho e Suez até o porto grego de Pireus no Mediterrâneo. Pireus é propriedade da chinesa COSCO, que também opera o porto, desde agosto de 2016; esse moderno terminal de contêineres para comércio entre Leste e Oeste da Ásia já é o porto que cresce mais rapidamente em toda a Europa.
Por sua parte, o presidente Recep Tayyip Erdogan da Turquia já deixou bem claro que o interesse nacional da Turquia envolve o "Canal de Suez, mares adjacentes e dali até o Oceano Índico." Ao mesmo tempo em que Ancara instalou uma base no Qatar – agora já recebendo soldados –, também estabeleceu um Conselho de Cooperação Estratégica Turco-saudita.
Ancara pode estar-se engajando lenta e firmemente num 'pivô' em direção à Rússia –, no sinal verde para o Ramo Turco. Mesmo assim, também se pode falar de 'pivô' na direção da China – que também se deve desenvolver, percalços incluídos, em todas as áreas chaves, desde passar a ser membro do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAII), até passar a integrar a Organização de Cooperação de Xangai (OCX).
Ambos os países, Turquia e Irã – também possível membro pleno da OCX para o próximo ano –, estão apoiando ativamente o Qatar no presente impasse, inclusive mediante embarques regulares de alimentos. Vê-se assim mais uma vez como Pequim simplesmente não se pode deixar arrastar politicamente para o que é, na essência, a intratável, viciosa guerra pelo poder regional entre Irã e sauditas. Mais uma vez, a Iniciativa Cinturão Estrada supera tudo.
O Egito implica problema extra. Está alinhado com Riad, no atual impasse: afinal, o marechal-de-campo presidente Al-Sisi depende da "prodigalidade" da Casa de Saud.
Mas a nova capital no Egito, do tamanho de Cingapura a leste do Cairo é essencialmente financiada por investimento chinês: $35 bilhões ao final do ano passado, e aumentando. Brindes extras incluem Pequim facilitar a troca de moedas – provendo um empurrão muito necessário na economia egípcia. Ahmed Darwish, presidente da Zona Econômica do Canal de Suez, só tem elogios para o principal investidor no Corredor do Canal de Suez, que é Pequim, por falar dela.
E há também a nascente Conexão Israelense-Chinesa. Israel apoia a guerra-relâmpago de sauditas-Emirados Árabes Unidos contra o Qatar como, essencialmente, mais uma frente de guerra 'à distância' contra o Irã.
China está apostando em construir a ferrovia para trens de alta velocidade que ligará os mares Vermelho e Mediterrâneo. Se o proverbial oceano de contêineres puder ser acomodado perto de Eilat, os chineses poderão transferir a carga pela ferrovia Vermelho-Mediterrâneo até o Corredor do Canal de Suez, do qual os chineses já tomaram conta.
Construir a conectividade é ação frenética em todas as frentes. O Grupo Porto Internacional de Xangai [ing. Shanghai International Port Group] já controla o porto de Haifa. A China Engenharia de Portos [ing. China Harbor Engineering] construirá um novo porto de $876 milhões em Ashdod. Israel já é a principal fornecedora de tecnologia agrícola para a China – por exemplo, para dessalinização de água, aquicultura e criação de gado, por exemplo. Pequim quer importar de Israel mais tecnologia biomédica, de energia limpa e de telecomunicações. Suspense nessa relação é a iminente integração de Israel também como membro do BAII.
Não é exagero dizer que, doravante, tudo que aconteça no Sudoeste da Ásia será condicionado por e inter-relacionado à super rodovia-empório terra-mar da ICE, do Leste e Sudeste da Ásia até o sudeste da Europa.
Focada no movimento amplo da ICE na direção da multipolarização, da globalização 2.0 "inclusiva" e na rápida disseminação da tecnologia da informação, a última coisa de que Pequim precisaria seria qualquer retrocesso forçado: algum impasse fabricado, enlouquecido, como o novo front de guerra existencial à distância entre a Casa de Saud e o Irã, e com Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel engalfinhados contra Qatar, Turquia, Irã – e Rússia.
Não há dúvidas de que a insônia tem atormentado as noites no Zhongnanhai.** *****