Por que a partir da revolução russa? Porque ela constituiu um acontecimento de inigualável importância como tentativa de superar o capitalismo e construir um mundo onde não houvesse nenhum tipo de exploração nem de dominação de um ser humano por outro, enfim, um mundo onde todos pudessem ter uma vida digna. Além disso, por que essa revolução, que despertou a esperança de milhões de pessoas, pela qual milhares de pessoas deram a vida, em nome da qual imensas lutas foram travadas, fracassou? O que aconteceu, tanto em termos teóricos quanto práticos, para que ela não pudesse atingir os objetivos pretendidos? Erros, deformações, incapacidades, falta de condições essenciais? Outras circunstâncias?
Por que é tão importante essa abordagem crítica? Porque é necessário aprender com o passado, compreender as causas dos insucessos e orientar melhor as práticas futuras. Porque essa crítica é conditio sine qua non para avançar no processo revolucionário.
Não se trata de uma tarefa fácil. Tanto pela complexidade dessa problemática, como pelas paixões que ela desencadeia. Paixões estas, não apenas entre os seus adversários, mas também, e de modo especial, entre os seus defensores. Críticas quanto a erros, deficiências e deformações são até aceitas por estes últimos. Mas, críticas que ponham em questão o caráter socialista dessa revolução e suas consequências – e de outras (chinesa, cubana, vietnamita, etc) – são imediatamente tachadas de contrarrevolucionárias, de defensoras do capitalismo. Argumenta-se, muitas vezes, que questionar o caráter da revolução russa é desconhecer, desmerecer ou menosprezar os aspectos positivos desse extraordinário acontecimento. Por isso mesmo, queremos deixar estabelecido, antecipadamente, que não desconhecemos, desmerecemos ou menosprezamos o extraordinário significado que ela teve para a humanidade; as enormes melhorias em termos de vida material, de saúde, de educação, de habitação, etc. para a população russa; a influência positiva que teve para a melhoria de vida até dos trabalhadores dos países capitalistas. Temos certeza, inclusive, que a luta do povo russo foi o elemento fundamental para a derrota do nazismo e, mais tarde, para o sucesso de muitas lutas de libertação colonial. Tudo isso, certamente, foi, também, conquistado a um custo muitíssimo alto para a maioria daquele povo.
Todavia, tudo isso não é argumento para dirimir o problema do caráter da revolução russa. A discussão a esse respeito situa-se em um nível que não põe em questão, de modo nenhum, esse reconhecimento.
Não nos ocuparemos, aqui, das críticas dos seus adversários. Estes, orientados pela perspectiva teórica e prática burguesa, tem todo interesse em demonstrar, a partir desses exemplos históricos e sem se importar com a verdade, a impossibilidade do socialismo. O que nos interessa são as abordagens daqueles que a defendem. Estes, pelo menos em termos de intenção, defendem a possibilidade e a necessidade do socialismo, independentemente de qual seja a sua concepção acerca dessa categoria. Nosso objetivo, porém, não é examinar os argumentos de cada grupo ou autor. Isso exigiria uma investigação muito ampla e prolongada. Buscaremos, aqui, com o risco conscientemente assumido de cometer erros, sinalizar as questões que nos parecem mais relevantes e que demarcam tanto as diversas posições quanto os rumos que sugerimos para essa investigação crítica necessária.
Temos consciência de que mesmo dentro desse universo, em sentido muito amplo, de esquerda, a tarefa não é nada fácil. De um lado, pelas paixões que esse tema desencadeia. Entre leninistas, trotskistas, stalinistas, anarquistas, socialistas democráticos e outros, as divergências são enormes e, muitas vezes, fundadas mais em preconceitos do que em argumentos científicos. De outro lado, e aí reside uma questão de capital importância, a ampla maioria das abordagens desse processo revolucionário já é tributária de uma concepção metodológica que é resultado desse mesmo processo. Uma concepção metodológica que abandonou a categoria do trabalho como fundamento ontológico do ser social e que, a partir disso, atribuiu à subjetividade o papel de regente tanto no processo de conhecimento quanto na ação prática. A isso nos referiremos mais adiante (a respeito da problemática metodológica ver, de nossa autoria: Educação e revolução e Método científico - uma abordagem ontológica).
Nesse amplo espectro da esquerda, independentemente do conceito de socialismo, a ampla maioria concorda que a revolução russa foi uma revolução socialista. Também concorda que a revolução, independente do que tenha realizado, fracassou. Essa apreciação também se refere a todas as outras revoluções: chinesa, cubana, vietnamita, norte-coreana, sandinista. No entanto, e de modo geral, duas questões dividem esse campo. Uma referente ao momento em que a revolução começou a degenerar; outra, referente às causas da degeneração.
Quanto ao momento, uma grande maioria entende que a revolução, com todas as suas dificuldades e percalços, manteve seu caráter socialista enquanto teve a direção de Lenin. Sua degeneração teria começado com Stalin. Vale lembrar, todavia, que houve grupos, minoritários, que afirmaram a degeneração mesmo durante o tempo da direção de Lenin. Outros entendem que o caráter socialista teve seu fim ou com a morte de Stalin ou com os últimos governos – Yeltsin e Gorbachev – e ainda com a queda do muro de Berlim, embora haja outros que ainda sustentam o caráter atualmente socialista da China, de Cuba e da Coreia do Norte.
Quanto às causas da degeneração, de novo, a ampla maioria entende que foram concepções errôneas ou erros tópicos cometidos pelo partido bolchevique e/ou por dirigentes, tenham sido eles Lenin, Trotski, Stalin e outros. Erros, particularmente nos terrenos econômico e político. Mas, juntamente com erros, também circunstâncias históricas adversas, tais como: a guerra civil interna, as agressões das potências capitalistas e a imensamente difícil situação econômica e social em que a Rússia se encontrou ao final da primeira Guerra Mundial.
Pese a todas as divergências, uma questão unifica a ampla maioria das abordagens: a centralidade da subjetividade, seja ela sob a forma da regência da subjetividade sobre a realidade objetiva, do reformismo ou do politicismo. Como veremos, isso também vale quando se atribuem os desvios às circunstâncias objetivas (por centralidade da subjetividade entendemos a regência do sujeito sobre o objeto, no processo de conhecimento e, aqui, a prioridade da ação política sobre a realidade objetiva, no processo de intervenção sobre a realidade).
Antes de prosseguirmos, é imperioso tratar da questão da relação entre subjetividade e objetividade e também esclarecer o que entendemos por politicismo.
Uma das ideias mestras da concepção materialista de história é que a realidade objetiva é o momento predominante na relação entre ela e a subjetividade. Conforme a célebre afirmação que encontramos em A ideologia alemã (2009, 32): “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”. Valha, porém, enfatizar que determinação não significa, aqui, nenhum entendimento da subjetividade com algo secundário e sem retroação efetiva sobre a realidade objetiva. A análise da categoria do trabalho mostra, com toda a clareza, como se dá essa relação entre subjetividade e objetividade. Temos, aí, claramente, uma relação entre o momento fundante (realidade objetiva) e o momento fundado (subjetividade). Ambos são momentos da realidade. Todavia, a realidade objetiva é o momento predominante, pois é ela que põe o campo de possibilidades dentro do qual a subjetividade pode agir. Para enfatizar mais essa relação, poderíamos citar a célebre afirmação de Marx acerca da história. Diz ele (2008, p. 207): “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade (grifos meus), em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”. Essa constatação será de suma importância quando abordarmos a questão do caráter da revolução russa.
O politicismo, por sua vez, é uma forma de expressão da regência da subjetividade sobre a realidade objetiva. Ele tem por essência a atribuição à dimensão política, cujo núcleo fundamental, na sociedade de classes, é o Estado, da tarefa de determinar os rumos essenciais do processo social. Sabemos, pelo menos desde Marx, que, na sociedade burguesa, é a lógica de autorreprodução do capital o momento determinante. Ressalvada a determinação recíproca entre todas as dimensões da realidade social – linguagem, socialidade, arte, Direito, ciência, educação, política, etc – é a reprodução do capital que determina os rumos essenciais da sociedade. O politicismo existe quando se atribui à dimensão política (Estado) a capacidade de controlar o movimento do capital. Nesse processo, o politicismo expressa, das formas mais variadas, a vontade de reformar, de humanizar, de melhorar essa forma de sociabilidade (reformismo) ou a afirmação de que o Estado, popular, operário) é o principal condutor do processo de transformação social em direção ao socialismo.
Não se confunda, porém, politicismo com atividade política. Esta é uma dimensão da atividade humana que tem a sua origem, a sua natureza e a sua função social específicas. Sem entrar no mérito da natureza da política, que discutiremos em outro momento, esta é uma dimensão cuja existência, importância e especificidade não podem ser negadas. Na sociedade de classes ela assume, necessariamente, a natureza de luta pelo poder político, quer seja a favor da manutenção da desigualdade social, quer seja a favor da superação radical da desigualdade. Todavia, como parte da subjetividade, a política tem que operar nos marcos – nunca rígidos – postos pela realidade objetiva. Para resumir: à política cabe a tarefa importantíssima de dirigir o processo social, mas no campo de possibilidades posto pela realidade objetiva. O politicismo é exatamente a intenção de ir para além dessas possibilidades e criar algo que a realidade objetiva não permite. Vale lembrar aquela afirmação de Marx (1971, p. 87): “Por outro lado, se a sociedade tal como é não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção e de circulação para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para fazê-la estourar seriam outras tantas quixotadas”.
Considerando que todas as abordagens da revolução russa tem como pano de fundo a concepção revolucionária marxiana, quer concordem ou não, no todo ou em parte, com ela, convém sumariar, mesmo que brevemente essa concepção. Até mesmo porque não há uma concordância unânime quanto aos elementos essenciais que a caracterizam.
1. A teoria revolucionária marxiana
Como sabemos, Marx afirma que o ponto de partida de uma concepção materialista da história é a constatação – “empiricamente verificável” – da existência de “indivíduos reais e de suas ações e condições materiais de vida”. Constata, também, que o primeiro e fundamental ato que esses indivíduos têm que realizar para continuar a existir, é a transformação da natureza, isto é, o trabalho. É através do trabalho que o ser humano transforma a natureza e a si mesmo. O trabalho, portanto, é a categoria fundante do ser social. Como consequência, em qualquer modo de produção, sempre encontraremos uma determinada forma de trabalho como seu fundamento. Não poderia ser diferente no modo de produção comunista. Segundo Marx, este terá como seu fundamento o trabalho associado. E trabalho associado não é uma simples associação de indivíduos, uma cooperativa, economia solidária ou trabalho voluntário. Trabalho associado é uma categoria tão precisa quanto trabalho assalariado e implica o controle consciente, livre, coletivo e universal dos produtores sobre o processo de transformação da natureza, base do comunismo.
Sabemos, porém, que a realidade social não se esgota no trabalho. Há, nela, muitas outras dimensões, tais como linguagem, socialidade, educação, conhecimento, arte, religião, Direito, política, etc. Todas elas, porém, tem sua origem última na categoria do trabalho. Todas surgem ou com ou a partir do trabalho. O que significa dizer que todas tem uma dependência ontológica em relação ao trabalho. Mas, todas elas retroagem sobre o trabalho e entre si, dando, assim, origem à dinâmica da totalidade social.
Ao analisar a sociedade burguesa, Marx constata que as duas classes fundamentais dela são constituídas pela burguesia e pelo proletariado. Também constata que é ao proletariado que interessa eliminar a exploração à qual ele é submetido pela burguesia. O que significa que esta classe será o sujeito fundamental, embora não único, de uma transformação que supere integralmente a sociedade burguesa.
Mas, a superação da sociedade burguesa tem como mediação inescapável, uma revolução. Diferentemente, porém, das revoluções anteriores, que, segundo Marx, foram revoluções sociais com alma política, a revolução proletária terá quer ser uma revolução política com alma social (ver, sobre isso, de Marx: Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano). Momento político e momento social são dois aspectos inextricavelmente unidos para dar forma à revolução proletária. Sem o momento político, isto é, sem a conquista do poder, não poderá entrar em cena o momento social, vale dizer, as transformações econômicas que caracterizam o trabalho associado. Mas, é de capital importância que fique claro: essas transformações econômicas, que constituem a essência da revolução tem um fundamento – o trabalho associado – e implicam uma mudança radical na natureza da produção: a eliminação do valor de troca e sua substituição pelo valor de uso, com todas as consequências aí implicadas (eliminação da mais-valia, do capital, do dinheiro, das coisas como mercadoria, etc.) Todavia, esta mudança radical pressupõe três condições: um alto grau de desenvolvimento da capacidade de produzir riquezas, em abundância, que possibilite satisfazer as necessidades básicas de todos; um sujeito capaz de realizar essas transformações e o esgotamento das potencialidades do atual sistema, que o transformem de força positiva em força negativa e destrutiva para a humanidade.
Estes são, em brevíssimo resumo, os elementos essenciais da proposta marxiana.
2. A II Internacional, a deformação do marxismo e a emergência, em larga escala, do reformismo e do politicismo
A trajetória da teoria marxiana, como todos sabem, foi extremamente complexa. Isto porque, mais do que qualquer outra, é uma teoria que assume, clara e abertamente, uma posição de classe. Trata-se de uma teoria que responde aos interesses mais essenciais do proletariado. Compreender o mundo até a sua mais profunda raiz e também transformá-lo radicalmente, eis o objetivo último do proletariado. E, para isso, é preciso que essa classe assuma a tarefa de liderar uma revolução, isto é, uma transformação que mude a totalidade da sociedade a partir da sua matriz, que é o trabalho.
Circunstâncias históricas concretas impediram que a transformação prospectada por essa teoria se efetivasse.
A derrota das tentativas revolucionárias de 1848 e da Comuna de Paris abriu, para o capital, amplas possibilidades de desenvolvimento, especialmente na Alemanha, levando esse país a uma rápida industrialização e, com isso, a um grande crescimento da classe operária. O desenvolvimento econômico permitiu uma significativa melhoria de vida para uma grande parte dos trabalhadores. Além disso, a legalização do Partido Socialdemocrata (socialista), composto de milhões de trabalhadores, permitiu que estes participassem abertamente do processo político e elegessem representantes para o parlamento. Esta situação contribuiu poderosamente para gerar, não só na mente de milhões de trabalhadores, mas também de muitos teóricos, inclusive marxistas, a convicção de que o socialismo poderia ser atingido sem uma ruptura radical com o Estado e o capital. Mas, para isso, era preciso fazer uma crítica do pensamento revolucionário de Marx e Engels, “adaptando-o” às novas circunstâncias. Começam, então, as elaborações teóricas - na economia, na filosofia, na história, na política, etc. – que configurarão o reformismo e o politicismo: o abandono da centralidade (ontológica) do trabalho em favor da centralidade (ontológica) da política; a afirmação de que o caminho para o socialismo poderia ser trilhado pela via das reformas e não da revolução; a atribuição ao Estado da tarefa de dirigir esse processo de construção de uma sociedade socialista.
É o primeiro momento em que se abandona a centralidade – teórica e prática – do trabalho em favor da centralidade – também teórica e prática – da política. É certamente, muito importante compreender como se deu esse processo, tanto teórica como praticamente. No entanto, isso não será objeto do presente texto.
3. A revolução russa
Maravilhosa, grandiosa, gloriosa. Esses e outros adjetivos acompanham, frequentemente, as abordagens da revolução russa. Alertados pelas advertências e pelos pressupostos referidos na Introdução e baseados na teoria revolucionária marxiana, procuraremos entender o processo que teve início em 8 de março de 1917 e teve seu fim em 1991. Um processo, evidentemente, complexíssimo, cuja investigação detalhada ainda está em curso e que, nem remotamente é nossa intenção abordar em seu conjunto (literatura sobre a revolução russa é muitíssimo extensa. A abertura dos arquivos da antiga União Soviética certamente trará á luz muitos novos elementos para análise. De todo modo, julgamos imprescindível a leitura e alguns livros: História da revolução russa, de L. Trotski; A crise do movimento comunista, de F. Claudín; As lutas de classes na União Soviética, de C. Bettelheim; Os bolcheviques e o controle operário. De M. Brinton; A revolução russa, de M. Tragtenberg; A revolução russa – de Lenin a Stalin, de E. Carr. Indispensáveis, também, as obras de Lenin.).
Todavia, em meio a essa complexidade é possível destacar alguns aspectos essenciais que, a nosso ver, configuram o fio condutor desse processo.
Os fatos imediatos são bastante conhecidos. Uma profunda crise do capitalismo, que culminou na primeira guerra mundial, que engolfou a maioria dos países do mundo e cuja essência era a disputa do mundo entre as grandes potências. Uma Rússia econômica, social e politicamente muito atrasada. Embora com pequenas ilhas de avanço, este atraso também atingia, no campo cultural, a maioria da população, amplamente analfabeta e submetida a condições brutais de exploração e dominação. Além disso, a maioria da população era composta de habitantes do campo – servos e camponeses – e de um proletariado muito diminuto e sem tradição de luta, dada a recentíssima e limitada industrialização. Para agravar a situação, um sistema político dominado por uma nobreza feudal e em profunda decadência.
Nesse caldo de enormes contradições e lutas no campo e na cidade é que adentrou a teoria marxiana, levada por diversos grupos revolucionários, por volta de 1870. É, também, nesse momento que se organizaram o Partido Socialdemocrata Russo que, apesar do nome, era um partido revolucionário e não reformista e outros partidos de esquerda.
O processo revolucionário teve seu primeiro momento de eclosão em 1905. Derrotado, ele voltou a se reerguer, com toda a força, em 1917. Vale notar que, de início, em 1917, não foi um movimento organizado e liderado por nenhum partido. O acirramento das contradições levou as massas a explosões que somente após algum tempo foram lideradas por vários partidos.
São conhecidos também os eventos de fevereiro a outubro de 1917, quando os bolcheviques, finalmente, assumiram o poder. Ao assumirem o poder, viram-se na necessidade de fazer a paz com a Alemanha para evitar uma derrota total. Porém, após o término da guerra encontraram um país devastado econômica e socialmente. A situação era simplesmente catastrófica. Produção econômica arruinada nas cidades e no campo, desemprego, desabastecimento das cidades, fome, miséria. Nesse momento, e até 1921, tiveram que enfrentar a oposição armada da burguesia auxiliada pelas potências imperialistas.
Diante disso viram-se na contingência de tomar medidas drásticas, mas muito problemáticas. Lembremos apenas algumas mais importantes: Já em fins de 1917, foi tomado um conjunto de medidas (criação de órgãos estatais, estabelecimento de determinadas relações entre Estado, sindicatos e comissões de fábrica, regulamentação do trabalho nas fábricas) que retirava das mãos das massas revolucionárias e especialmente dos sovietes e das comissões de fábrica o poder sobre a organização da produção tanto em nível geral quanto no interior das fábricas.
O chamado Comunismo de Guerra, que implicava o confisco da produção do campo, a proibição de qualquer atividade econômica privada, o racionamento para privilegiar o Exército Vermelho que lutava contra os brancos e os invasores, a militarização do trabalho e dos sindicatos com a proibição de greves, a volta da hierarquização nas fábricas, com isso, a perda de poder dos comitês de fábrica, a volta da hierarquização também no exército, intensa centralização do poder político nas mãos do partido bolchevique e, depois, do Comitê Central do partido.
Vale lembrar que essas medidas tiveram forte oposição de vários setores sociais que apoiavam, de modo geral, a revolução. Em especial, a chamada Oposição Operária e os diversos grupos anarquistas. No interior do próprio Partido Bolchevique as medidas que caracterizaram o “Comunismo de Guerra” também não eram, de modo nenhum, unanimidade.
Frente aos ataques e sabotagens de toda ordem da burguesia, à agressão das potências capitalistas e mesmo frente ao descontentamento e à oposição interna, foi organizado um enorme aparelho repressivo centralizado pela Tcheka à qual foram atribuídos poderes cada vez mais amplos e discricionários.
Com o fracasso do Comunismo de Guerra, Lenin, à frente do governo, implantou a NEP – Nova Política Econômica. Em linhas gerais, ela permitia a livre iniciativa na criação de pequenas e médias empresas de produção e comércio, a volta de muitos especialistas do antigo regime para as tarefas burocráticas, o retorno e uma certa liberdade do mercado, a exploração de pequenas propriedades no campo, a entrada de capitais estrangeiros, o abandono da requisição forçada de produtos agrícolas e do racionamento, o fim das trocas diretas, a liberdade salarial e o retorno da moeda como meio de pagamento. Todavia, o Estado centralizado mantinha o controle geral da economia e de todo o processo social. Também continuavam a existir a hierarquização nas fábricas, a indicação dos dirigentes das fábricas pelo Estado e não eleitos pelos trabalhadores, a rigidez e a intensificação do trabalho, a submissão dos sindicatos ao Estado, a organização do exército nos moldes tradicionais e o aparato repressivo cada vez mais forte e atuante.
O impulso às atividades econômicas, providenciado pela NEP, permitiu um crescimento da produção e, com isso, uma melhoria geral da vida da população. Todavia, o atraso no desenvolvimento das forças produtivas ainda era muito grande. Daí porque, a partir do intenso debate econômico no interior do partido, surgiram os Planos Quinquenais como forma de impulsionar, de maneira muito rápida, o desenvolvimento econômico. A construção do socialismo implicaria, segundo alguns teóricos, uma “acumulação socialista primitiva”.
Além dessas questões, outros dois elementos importantes integravam a situação russa pós-revolucionária. Primeiro: a expectativa da revolução em outros países, especialmente na Alemanha. Sabe-se que os dirigentes bolcheviques tinham claro que não seria possível caminhar em direção ao socialismo em um país tão atrasado como a Rússia. Mas, havia fortes indícios de que podia acontecer a revolução também na Alemanha, o que, provavelmente, arrastaria a França e outros países capitalistas importantes. Isto levaria à efetivação de uma das condições fundamentais para a continuidade da revolução: a sua universalização. Segunda: a convicção de que o capitalismo se encontrava em uma fase agonizante. Sua fase imperialista juntamente com a sua monopolização estariam a indicar que ele estaria atingindo seus limites últimos e abrindo as portas para a possibilidade de construção do socialismo. Esta convicção não era destituída de bons argumentos, como demonstram as análises de Lenin. Apesar disso, era equivocada, pois o espaço existente para a reprodução do capital era ainda bastante amplo.
O conjunto dessas circunstâncias objetivas configurava um claro beco-sem-saída: um campo onde a possibilidade de entrar em cena, ainda que de modo processual, a alma do socialismo, isto é, o trabalho associado (controle livre, consciente, coletivo e universal da produção, retrocesso do valor de troca e avanço do valor de uso, com tudo o que isso implica), estava totalmente ausente. Tinha sido feito o primeiro movimento da revolução – a reabsorção do poder político pelo conjunto dos revolucionários. Mas, como afirmava Marx, esta era apenas uma mediação para entrar em cena a alma do socialismo, o trabalho associado. Ausente essa possibilidade, todo o processo ficava inteiramente bloqueado.
Importante observar que, ainda que tenham sido cometidos erros, não se tratou nem de erros, nem de problemas relativos à direção, nem de falta de pessoas capacitadas, teórica e politicamente, nem de esforço e dedicação. Tratava-se de uma situação objetiva que não poderia ser superada por nenhuma intervenção da subjetividade, por mais forte, dedicada e lúcida que fosse. O próprio Lenin, com toda a sua genialidade, teve que curvar-se diante dessa realidade objetiva e tomar medidas concretas que iam em direção oposta ao caminho para o socialismo, como vimos com as medidas assumidas ainda em fins de 1917, depois o abandono do Comunismo de Guerra e a instauração da Nova Política Econômica.
Por isso, a meu ver, é equivocado afirmar que há uma ruptura essencial entre o período leninista e o período stalinista. Ainda que as diferenças sejam imensas, as linhas de força do campo dentro do qual tanto Lenin quanto Stalin se moveram eram essencialmente as mesmas (a questão da continuidade ou não entre o período de Lenin e o de Stalin é espinhosa e muito controversa. Duas posições extremas: total continuidade ou total ruptura. Pensamos que há um tertium: uma continuidade na descontinuidade. A descontinuidade se refere à forma com que cada um deles enfrentou a situação e, no caso de Lenin, se estivesse no lugar de Stalin, certamente agiria diante da realidade concreta. A continuidade se refere ao fato de que ambos tiveram que agir dentro de um campo limitado de possibilidades posto pela realidade objetiva. Dentro desse campo, dadas as circunstâncias concretas, não se encontrava, como alternativa, a possibilidade de orientar o processo em direção ao comunismo. Isso é claramente evidenciado pelo fato de que, desde fins de 1917 foram tomadas medidas, apoiadas por ambos, que contribuíram para desviar a revolução do caminho do comunismo. É inegável que há diferenças enormes entre esses dois períodos. Como líder e como teórico, Lenin era incomparavelmente superior a Stalin. Sempre preocupado em analisar a realidade concreta. Stalin era teoricamente muitíssimo limitado. Seu espaço preferido era o jogo do poder. Para ele, a teoria não era um guia para a ação, mas um meio de corroborar as decisões tomadas pelo poder.).
O stalinismo implicou, certamente, uma inflexão muito profunda nos caminhos tomados pela revolução. Sua forma específica deve muito às qualidades de Stalin. Mas, os lineamentos essenciais do processo não seriam alterados qualquer que fosse o dirigente.
Pode-se, e com bastante razão, imaginar que, sob a direção de Lenin, o processo revolucionário não teria tomado o caminho do stalinismo, pois as qualidades dos indivíduos tem um peso diferenciado na história. Mas, dada a ausência de condições objetivas para caminhar no sentido do socialismo, os parâmetros essenciais não sofreriam alteração significativa.
O caminho que levaria à burocratização, à formação de uma casta de funcionários públicos privilegiados, à criação de um Estado típico (um conjunto de instituições políticas, jurídicas, militares, repressivas, ideológicas separado do conjunto dos revolucionários e com plenos poderes sobre a vida de todos os indivíduos, especialmente os que não se encontravam na direção do Estado), autocrático e altamente repressivo, ao afastamento das massas de uma participação ativa no processo, à transformação dos sindicatos em meras correias de transmissão do Estado, à continuidade da exploração dos trabalhadores, começou a ser tracejado bem antes da morte de Lenin. Sabemos que ele mesmo reconheceu a crescente burocratização sem, contudo, atinar com a raiz do problema e sem poder encontrar qualquer possibilidade de superá-la.
Nessa situação tornava-se impossível avançar no processo de fenecimento do Estado, pois isto dependia da eliminação radical da propriedade privada, das classes sociais e da exploração dos trabalhadores. Ora, tudo isso dependia de uma radical mudança na forma do trabalho, algo inteiramente impossível nas circunstâncias dadas. O máximo possível, nessas circunstâncias, era eliminar, através de um controle do Estado, a propriedade privada e os aspectos concorrenciais do capitalismo. No entanto, não seria possível eliminar o próprio capital, pois este se originava da mais-valia produzida pelos trabalhadores. Esse processo, como se pode ver em todas as tentativas de revolução socialistas, podia durar algum tempo, mas, como o próprio Marx já advertira em A ideologia alemã, não podia, de modo nenhum, se perpetuar e muito menos representar a transição para o comunismo.
Desse modo, a revolução se deteve no primeiro momento, o momento político – a destruição do Estado burguês e a reabsorção do poder político pelos revolucionários – mas, não pode avançar. Por sua vez, o não avanço em direção à alma social (trabalho associado) implicou também a degeneração do momento político: o afastamento das massas da participação ativa no processo (a democracia proletária). Não foi, portanto, a “falta de socialização do poder político”, como muitos marxistas afirmam, que impediu a continuidade de “socialização do poder econômico”. Pelo contrário, foi a impossibilidade de implementar, efetivamente, nas circunstâncias dadas, a efetiva socialização da economia – retrocesso do valor de troca e avanço do valor de uso – que impediu a continuidade e o aprofundamento da democracia proletária.
Pode-se argumentar, e muito se argumentou, que foi feito “o que era possível” diante da situação real. Isto, sem dúvida, é verdade. Ou se tomavam essas medidas ou outras similares ou se entregava o poder de volta ao Czar ou à burguesia. E essas medidas ou outras similares teriam que ser tomadas qualquer que fosse a direção: Lenin, Trotski, Stalin, a Oposição Operária ou os anarquistas. A forma mudaria, mas não o conteúdo essencial. Contudo, o que não se poderia fazer, mas se fez, é chamar isso de socialismo, isto é, um processo de transição do capitalismo ao comunismo. Vale observar que isso não significa nem justificar nem condenar o que foi feito. Trata-se apenas de compreender o processo concreto e dele tirar as lições para o futuro.
Teórica e praticamente, as consequências dessa situação concreta foram imensas. Teoricamente: a teoria marxiana teve que ser, e foi, reformulada, tanto pelos que apoiavam esse processo quanto por muitos dos seus críticos, de modo a dar apoio a esse “novo caminho” ou para fazer a crítica dele. Categorias como trabalho, valor (teoria do valor), socialismo, revolução, Estado, classe e lutas de classes, democracia, cidadania e outras foram profundamente reformuladas. Criou-se, assim, uma nova ortodoxia, chamada de marxismo-leninismo e, mais tarde de marxismo-leninismo-stalinismo, submetida ao controle do Estado e, em última instância, ao Partido Comunista e, mais ainda, ao Secretário Geral. Neste caso, a teoria deixou de ser uma tradução teórica do processo real e, assim, um guia para a ação, para transformar-se em um instrumento para corroborar as decisões tomadas na instância política. Com isso a formação dos militantes se transformou em mera preparação de ativistas. Dogmatismo e sectarismo eram as marcas dessa formação. Não mais era permitido pensar, questionar, estudar com seriedade, pois a teoria era elaborada nos mais altos escalões dos partidos. A dialética se transformou na “arte de cair sempre de pé”. Aos militantes cabia apenas aplicar aquilo que ou já estava codificado na “Bíblia marxista” (Marx, Engels, Lenin e Stalin) ou era decidido nas instâncias política superiores. A deformação que isso produziu na militância foi simplesmente devastadora.
Já fizemos referência, anteriormente, à deformação, teórica e prática, do ideário marxiano feita pela II Internacional. Com entonações diferentes, a perspectiva reformista da socialdemocracia alemã foi retomada após a revolução russa, derivando nas mais variadas tendências do “socialismo democrático”. E até mesmo de muitas posições que apenas tinham o nome de socialismo, mas eram somente formas mascaradas de reprodução dos interesses burgueses.
Praticamente: toda a luta entre capital e trabalho, que se desenrolou desde a revolução russa até o momento presente foi e continua sendo profundamente tributária do caminho aberto por aquela revolução. Como demonstra F. Claudín no livro A crise do movimento comunista, toda a estratégia foi traçada no sentido de proteger o que era proclamado como “a pátria do socialismo”. Por um lado, todos os partidos comunistas, em todos os países, seguiram, embora com suas especificidades, o figurino do PC da URSS, tanto teórica quanto praticamente. Do mesmo modo, a relação entre partidos e sindicatos e entre Estados (ditos socialistas), partidos e sindicatos também era organizada nos mesmos moldes da União Soviética. Por outro lado, esse processo levou ao abandono da centralidade do trabalho em benefício da centralidade da política, com imensas e perversas consequências para as lutas dos trabalhadores contra o capital (a esse respeito, ver: Descaminhos da esquerda - da centralidade do trabalho à centralidade da política.).
De algum modo, todas as outras tentativas revolucionárias socialistas – chinesa, cubana, vietnamita, norte-coreana – seguiram caminhos semelhantes ao da revolução russa, enfrentando, também, circunstâncias semelhantes.
O resultado mais geral de todo esse processo foi o fracasso de todas as tentativas de superar o sistema capitalista e de caminhar em direção ao comunismo. Além disso, e como apontamos no texto O grande ausente: a perda, pelos trabalhadores, da perspectiva revolucionária, teórica e praticamente e a emergência, em seu lugar, do reformismo e do politicismo.
Certamente, houve autores que assumiram uma postura crítica face a essa dogmatização. Com diferentes entonações, podemos citar, entre eles: A. Gramsci, Rosa Luxemburgo, L. Trotski, G. Lukács, C. Bettelheim, M. Brinton, F. Claudín. Referência especial merece I. Mészáros, o primeiro a questionar em profundidade o caráter socialista da revolução russa. Independente de concordância total, sua obra Para além do capital é um marco fundamental nesse questionamento.
4. Lições para o nosso tempo
Que lições tirar de tudo isso? Muitas, certamente. Porém, dada a brevidade do texto, apenas apontaremos o que nos parece mais importante.
Em primeiro lugar, do ponto de vista teórico, a necessidade de resgatar a perspectiva revolucionária. Isto implica retomar o caminho proposto por Marx: começar pela categoria trabalho como fundante do ser social e, a partir dela, compreender o surgimento de todas as outras categorias e suas relações. Compreender, com isso, o processo histórico e social como uma totalidade, com as devidas mediações, contradições e particularidades. Nunca abandonar o trabalho como fio condutor de todo o processo histórico.
Importante assinalar que não basta falar em classes e luta de classes. É preciso reconstruir toda a concepção de mundo e de método científico cujos fundamentos foram lançados por Marx, de modo a fundamentar solidamente o caráter radicalmente histórico e social do mundo humano e a nossa capacidade de compreendê-lo e também de transformá-lo radicalmente.
Este ponto de partida permitirá fundamentar a possibilidade e a necessidade da revolução, da superação radical do capitalismo e da construção de uma sociedade comunista. Considerando que os acontecimentos históricos deformaram profundamente todo o ideário marxiano, especialmente os conceitos de comunismo e de revolução, e enfraqueceram enormemente a crença na sua possibilidade, essa tarefa é da máxima importância.
Do mesmo modo, esse ponto de partida e a teoria, fundamentada nele, desenvolvida por Marx (e outros autores) permitirão fazer a crítica radical do sistema do capital e compreender a crise atual, alicerçando a ideia de que o aperfeiçoamento e a humanização do capital são uma impossibilidade absoluta e que a única saída positiva para a humanidade está na organização de outra forma de sociabilidade fundada no trabalho associado.
Em segundo lugar, e a partir daqueles fundamentos, resgatar a natureza da revolução proletária, deixando claro que ela tem como essência uma mudança radical na forma do trabalho, isto é, a superação do trabalho assalariado e a instauração do trabalho associado. Não se trata, portanto, de estatização dos meios de produção, de planejamento estatal da economia, de supressão jurídico-política da propriedade privada, mas de controle, livre, consciente, coletivo e universal dos produtores sobre o processo de produção. Resgatar, com isso, a verdadeira natureza do objetivo final da luta dos trabalhadores: a construção de uma sociedade comunista, fundada no trabalho associado. Isso também permitirá elaborar uma sólida crítica a todo tipo de reformismo e politicismo (ver, a esse respeito, o artigo: Trabalho associado e revolução proletária.)
Em terceiro lugar: compreender que o caminho da transição do capitalismo ao comunismo não passa pela tomada do Estado, mas pela destruição do Estado burguês e pela reabsorção do poder político pelo conjunto dos revolucionários como mediação para o combate político à burguesia e para a entrada em cena do trabalho associado (essenciais, para isso, as obras de Marx: Glosas críticas e A guerra civil na França.)
Para isso, é da máxima importância rediscutir a problemática do Estado, enfatizando sua natureza, sua função essencial e as questões relativas à questão do poder político no processo de transição do capitalismo ao comunismo. Como já tratamos dessas questões em outro texto – Trabalho associado e extinção do Estado – remetemos a ele (também é de capital importância ler, a esse respeito, o livro de I. Mészáros: Para além do capital e o importante trabalho de Rafael A. da Silva: Dilemas da transição – um estudo crítico da obre de Lenin de 1917 a 1923.
Também é de fundamental importância rediscutir a problemática referente ao partido, sua natureza, sua função como instrumento da classe operária para a orientação das suas lutas, e a relação entre ele, os sindicatos e as massas.
Importantíssima lição para o nosso tempo também é aquela referente à formação de militantes. Na mesma medida em que a teoria foi sendo transformada em dogma, em receita e em responsabilidade exclusiva das direções partidárias, a formação dos militantes foi se tornando cada vez mais estreita, limitada e “catecísmica”. Não era mais preciso estudar, questionar, investigar. Tratava-se apenas de obedecer e aplicar as “teorias” produzidas pelas direções. Daí para o dogmatismo e o sectarismo é um passo muito pequeno. Tudo isso tem que ser repensado em profundidade (a esse respeito, sugerimos a leitura do texto de S. Lessa: Crítica do pratiscismo “revolucionário”. ).
Em quarto lugar, do ponto de vista prático: organização dos trabalhadores independente do Estado e do capital. Uma tarefa nada fácil, dadas as estreitas relações entre sindicatos, Estado e capital que foram sendo construídas ao longo do processo histórico. Isto implica articular as lutas específicas com o objetivo geral de superação radical do capitalismo. Implica, também, que o eixo das lutas esteja fora do Estado e do parlamento e que elas adquiram um tom cada vez mais anticapitalista e anti-estatal.
Alega-se, muitas vezes, que o socialismo não está na ordem do dia e que, no momento, a correlação de forças é desfavorável aos trabalhadores. É a mais pura verdade. Esquece-se, porém, de examinar o processo que levou a essa situação desfavorável e, inclusive, a enorme responsabilidade que a estratégia que orientou predominantemente a luta entre capital e trabalho desde a revolução russa teve nessa configuração. Esquece-se, também, que correlação de forças se constrói e que não é a soma de lutas parciais que resultará em acúmulo de forças para a revolução. Se não houver a articulação entre as lutas parciais e o objetivo mais geral, nunca haverá acumulação de forças (consciência de classe mais organização independente) que possibilitará dar um salto de qualidade em direção à revolução. Jamais haverá acumulação de forças para a revolução se as lutas priorizarem o campo parlamentar/estatal. Faz-se necessário articular as lutas intra e extraparlamentares e, mais ainda, imprimir a todas elas um caráter cada vez mais anticapitalista e anti-estatal.
A modo de conclusão
Apreciar os imensos e positivos impactos que a revolução russa – e outras tentativas revolucionárias (chinesa, cubana, vietnamita, etc) teve para a humanidade não pode nos impedir de questionar em profundidade seu caráter. E afirmar que ela – e nenhuma das outras – teve um caráter socialista (no sentido de transição para o comunismo), em nada diminui os enormes benefícios que ela trouxe à humanidade.
Nossa intenção, nesse texto, foi argumentar no sentido de que o caráter não socialista da revolução russa não se deveu a nenhum problema da subjetividade (erros, medidas eq uivocadas, problemas de direção, etc.), mas ao fato de que, no campo da realidade objetiva, não estava presente a possibilidade de trilhar o caminho da transição do capitalismo ao comunismo. E, a partir dessa constatação, repensar as tarefas e os caminhos que nos cabem atualmente no sentido de resgatar, teórica e praticamente, a perspectiva revolucionária.
Referências bibliográficas
BETTELHEIM, CH. A luta de classes na União Soviética. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
BRINTON, M. Os bolcheviques e o controle operário. Porto, Afrontamento. 1975
CLAUDÍN, F. A crise do movimento comunista. São Paulo, Gobal ed., 1985
LESSA, S. Por que as revoluções não levaram à sociedade socialista? In : Espaço Socialista, Jornal n. 79.
_____, Crítica ao praticismo “revolucionário”. In: Práxis, n. 4, jul/1995
MARX, K. Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano. São Paulo, Expressão popular, 2010
_____, O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Expressão Popular, 2008
_____, A guerra civil na França. São Paulo, Boitempo,2011
_____, Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. Mexico, Siglo XXI ed., 1971
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo, Boitempo, 2002
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Expressão Popular, 2009
TRAGTENBERG, M. A revolução russa. São Paulo, Atual, 1988
SILVA, R. A. da. Dilemas da transição – um estudo crítico da obra de Lenin de 1917 a 1923. Dissertação de mestrado. Unicamp, 2007
TONET, I. O grande ausente. In: Novos Temas, n. 10, 2014
_____, Trabalho associado e extinção do Estado. In: Rebela, v. 3, n. 2, 2014
_____, Trabalho associado e revolução proletária. In: Novos Temas, n. 5/6, 2011/2012
_____, Educação e revolução. In: Germinal, n. 2, 2010
_____, Método científico – uma abordagem ontológica. São Paulo, Coletivo Veredas, 2016
TONET, I. e NASCIMENTO, A. Descaminhos da esquerda – da centralidade do trabalho à centralidade da política. São Paulo, Alfa/Ômega, 2009