Quando o escritor/artista aborda um tema histórico, existe na proposta estética grande responsabilidade política. Mesmo recorrendo à licença poética, um direito de todo artista, ele está cutucando a onça da história: esta é cheia de surpresas, possui movimentos imprevisíveis e sua distância em relação ao escritor nunca é totalmente segura. Se faz necessário conhecer objetivamente as tendências sociais, as contradições inerentes ao processo histórico para encarna-lo sob a forma artística.
Compreendendo as determinações inerentes ao tema histórico escolhido, o escritor se vê diante da questão da representação artística, coisa que não é problema do historiador: seja sob a condição de romancista ou poeta, contista ou dramaturgo, o escritor lida com procedimentos estéticos que influenciam na maneira como o público vai se relacionar com o tema histórico apresentado na obra de arte. É precisamente neste ponto que reside a mencionada responsabilidade política do autor: quando nos referimos a um fato histórico, lidamos necessariamente com as imagens que temos do mesmo. Esta é uma questão claramente ideológica, já que artistas revelam nas obras, mesmo que não queiram, as ideologias de sociedades divididas em classes.
Pinturas, esculturas, romances, peças teatrais, filmes, telenovelas etc, constituem imaginários de diferentes épocas. A arte de uma época é sempre uma porta de entrada para a reflexão histórica desta mesma época. Entretanto, quando um artista fala do passado, pesa sobre ele uma série de questões ideológicas e portanto metodológicas: não se trata apenas de representar mas de pensar a história. O anacronismo é uma armadilha não apenas para historiadores e jornalistas. Obras de arte que pretendem tratar objetivamente de uma situação histórica, podem sofrer um tremendo prejuízo artístico se não apresentarem corretamente os níveis de desenvolvimento desta mesma situação. Certamente o contexto da indústria cultural é o menos indicado para que a classe trabalhadora tenha contato com as representações artísticas dos mais variados períodos históricos.
Salvo raríssimas exceções, o que encontramos em grande parte das produções da indústria cultural, são figurinos e cenários de determinadas épocas embalados em amores folhetinescos, banalizações culturais e mascaramentos políticos. É inacreditável a quantidade de filmes hollywoodianos em que americanos aparecem fantasiados de egípcios, gregos e romanos da antiguidade. Uma estética de vídeo game é usada para retratar batalhas históricas e acontecimentos mitológicos, sendo que fica difícil o protagonista ocultar o chiclete na boca e o taco de basebol nas mãos. Este é um problema grave na medida em que os trabalhadores acabam tendo seu imaginário histórico contaminado por representações artísticas duvidosas: o entretenimento ainda é o modo mais eficaz de injetar o veneno do imperialismo e dos valores da classe dominante.
A situação alienante agrava-se quando observamos escritores e artistas que não prestam atenção em questões históricas: o ontem e o hoje aparecem pulverizados numa atitude de indiferença frente aos problemas da coletividade. Trotski afirma no prefácio do volume 2 da sua obra A História da Revolução russa, que diante de milhares de livros lançados no mercado, cuja tônica é a do romance pessoal e das obras movidas por incertezas melancólicas, é preciso ter o direito igual de chamar atenção para os dramas coletivos, que se inserem pra valer na vida da humanidade.
A observação do comunista russo ainda é válida. Não se trata de massacrar sentimentos individuais do artista em prol de representações literárias da coletividade(a temática histórica pode ser um mero esconderijo para um escritor fugir dos seus problemas pessoais). Assegurar o direito de um poeta exteriorizar suas angústias e paixões de ordem pessoal, se dá na mesma medida em que se fazem necessárias também obras literárias voltadas para os grandes temas históricos.
Logicamente não se negligencia aqui abordagens artísticas de assuntos históricos que as narrativas convencionais ocultaram por muito tempo: o cotidiano do homem comum, a vida dos anônimos, abrangem temas que interessam especialmente ao escritor revolucionário. Quem sente admiração pelos feitos dos imperadores e monarcas, assume uma posição política reacionária. Para um artista de esquerda, as pequenas histórias não são fragmentos perdidos no tempo e no espaço: elas constituem enredos por onde o movimento da história se faz sentir em toda sua intensidade. São precisamente as mudanças na consciência das massas durante o cotidiano das épocas revolucionárias, que interessam ao autor progressista. A defesa da liberdade total em arte, inclusive na escolha do tema, pertence ao mesmo caldo filosófico que faz a seguinte exigência ao artista: é preciso dar sentido à história! Se a história da humanidade não possui sentido, se passamos em revista os mais variados enredos históricos desconsiderando a luta de classes, por que defender a classe trabalhadora hoje? Trata-se de um nobre sentimento político, ou da certeza histórica de que é o proletariado aquele que pode colocar um ponto final na história das sociedades de classes? É terrível que muitos escritores, artistas e historiadores desconsiderem esta pergunta. A consequência de olhar a história como um amontoado de fatos sem direção, culmina em obras literárias ocas, que descambam facilmente para o mar de meras curiosidades e futilidades, que atende ao apetite do pequeno burguês desembestado.
Quando a arte de uma época refere-se a uma época passada, podem existir várias motivações na jogada: o artista pode pegar emprestado o enredo de uma época para falar de fantasmas pessoais, da morte, do amor, das lutas sociais e por aí vai.
O idealismo é a grande tentação de muitos artistas , sobretudo quando estes tentam estabelecer juízos precipitados e generalizações sobre a condição humana(menciono esta questão citando as discussões que Lassale estabelece com Marx e Engels em torno do tema da tragédia revolucionária; ver artigo A literatura segundo Marx e Engels, publicado no ano passado neste mesmo jornal). Não existe fórmula artística para referir-se a uma dada época. A pesquisa histórica é insuficiente se o artista não está aberto para novas experiências estéticas: o que está em questão, é uma representação artística da história que mostre ao público a possibilidade histórica de ruptura. Bertolt Brecht ainda é uma referência estética para pensarmos a questão.
Contrariando o realismo tradicional, Brecht deu mobilidade formal aos enredos históricos: em suas peças, o teatrólogo alemão rompe com o ilusionismo e ultrapassa o mero reflexo para mostrar que os personagens e suas ações são resultados históricos(eles podem mudar). Em Brecht é o distanciamento crítico, o estranhamento, que permite fazer como que o ator comente o significado histórico/político do fato representado. O espectador compreende através desta estratégia artística de proveniência modernista, o movimento da história.
Não importa se um artista se refere a uma greve geral ocorrida no Brasil em 2017, ou à mobilização dos plebeus contra os patrícios em Roma no ano de 494 ac. Ele deve compreender objetivamente um período sem que isso implique em desvantagens sobre a sua subjetividade artística, sobre seus recursos criativos. Quando o escritor/artista de esquerda aventura-se pela história, ele não quer saber de meras curiosidades ou de emoções baratas: ele quer é acelerar a locomotiva da história!