Nada como um blockbuster de primeira linha (e de primeira hora, se pensarmos na origem da série) para terminar um ano que não foi lá dos mais animadores em matéria de cinema. Estou falando, é claro, de Os últimos jedi, o mais novo episódio da saga Star Wars.
É o oitavo exemplar da série, e um dos melhores. Alguns de seus elementos e características talvez ajudem a entender o apelo duradouro dessa fantasia criada por George Lucas e apresentada ao mundo pela primeira vez há quarenta anos.
Em primeiro lugar, há a ambiguidade profunda dos personagens, que talvez nunca tenha sido explorada de modo tão sistemático como em Os últimos jedi.
Maniqueísmo e ambiguidade
Entenda-se: há um maniqueísmo manifesto em Star Wars, já que desde o início estão definidas as forças antagônicas do bem e do mal, ou antes, o lado luminoso e o lado sombrio da “Força”. Mas esse maniqueísmo de princípio, essa polarização moral básica, não implica a criação de personagens eterna e imutavelmente bons, ou eterna e imutavelmente maus. Pelo contrário: desde o vilão Darth Vader, inicialmente o “escolhido” para ser o jedi que traria equilíbrio à Força, passando pelo marginal tornado herói Han Solo, há uma oscilação entre luz e trevas, ou mesmo uma transmutação de uma coisa na outra, no interior de cada personagem importante.
Em Os últimos jedi essa ambivalência intrínseca atormenta evidentemente o jovem Kylo Ren (Adam Driver), o filho de Han Solo e da princesa Leia (Carrie Fisher) cooptado pelo lado negro, mas está presente também no jedi tornado eremita Luke Skywalker (Mark Hamill), na sua discípula Rey (Daisy Ridley) e até em personagens secundários.
Consciente da ânsia do espectador em filiar cada ente na tela (pessoa, animal ou máquina antropomorfizada) a um dos times em combate, o diretor e roteirista Rian Johnson joga com essa expectativa: o mercenário malandro DJ (Benicio del Toro) se revelará um novo Han Solo, servindo ao bem? A vice-almirante Holdo (Laura Dern) colocará tudo a perder com seu autoritarismo arrogante ou se sacrificará pela causa? O “tema do traidor e do herói”, que Borges consagrou num conto memorável, reverbera aqui de modo recorrente.
Assim como George Lucas, Rian Johnson sabe que o que garante o engajamento do espectador não é o espetáculo pirotécnico dos combates espaciais, mas a empatia (ou antipatia) com as criaturas na tela. O verdadeiro conflito se dá entre indivíduos, e às vezes no interior de cada um deles. Por isso há sempre um momento em que a máquina da guerra se paralisa e silencia para dar lugar a um duelo de espíritos, de energias psíquicas e morais, geralmente concretizado numa luta de sabres de luz (essa invenção maravilhosa de nossa era).
Outro trunfo da saga, em seus melhores momentos, é a hábil mistura de referências mitológicas e iconográficas, já comentada à exaustão por críticos e estudiosos: do western às filosofias orientais, dos cavaleiros da távola redonda às histórias em quadrinhos, das lendas da antiguidade aos videogames, Star Wars parece um compêndio da cultura de nossa época saturada de imagens e cacos de outras eras. Para quem não embarca na fantasia, tudo não passa de uma mixórdia de estilos e apropriações, um estridente samba do crioulo doido, uma alegoria arbitrária de escola de samba com sofisticação tecnológica, emoldurada em sentimentalismo piegas e estética kitsch. Mas essa atitude pedante de rejeição em bloco certamente não é a melhor maneira de entender o que se passa na tela e fora dela.
A chave do tamanho
Do ponto de vista da forma cinematográfica, o que chama a atenção na série, e neste novo filme em especial, é, por um lado, o jogo entre os ambientes fechados (naves, grutas, salas de controle) e os abertos (espaço sideral, desertos, montanha, mar), entre o mundo fabricado e o mundo natural. Por outro lado, há o recurso frequente às vertiginosas mudanças de escala. Estamos numa pequena nave em que cabem duas pessoas (ou uma pessoa e um droid) e de repente o quadro se abre e essa nave é com um inseto minúsculo entrando numa gigantesca estação espacial ou coisa que o valha. O efeito sensorial é fascinante.
Em Os últimos jedi há uma cena que brinca com essa “chave do tamanho”: vemos o que parece ser uma nave aterrissar acionando jatos de calor, mas no segundo seguinte esse aparato se revela um prosaico ferro de passar roupas pousando sobre uma jaqueta.
Essa passagem evidencia também outro traço constante da saga: o humor, usado não apenas como alívio cômico dos momentos de tensão, mas também como signo de ironia, de saudável distanciamento, como que dizendo ao espectador: “Ei, não leve tudo tão a sério, estamos aqui para nos divertir”.
Para se divertir com Os últimos jedi é preciso vencer os primeiros dez ou quinze minutos de pura ação bélica, explosões em profusão, montagem frenética e música altissonante. É como se, nessa sequência inicial, os realizadores fizessem um agrado aos aficionados da estética de videogame, pagando pedágio ao “gênero” para poder depois dedicar-se ao que interessa.
E o que interessa, no caso, é o que fica na sensibilidade e na memória: o espírito da revolta dos marginalizados e oprimidos (não por acaso representados por uma filha de sucateiros, um negro, um latino, uma oriental) contra o poder despótico da riqueza e das armas. “Escória”, diz com desprezo o ariano do dark side ao negro Finn (John Boyega). Este responde altivamente: “Escória rebelde”. E as imagens que apontam para o futuro (sem que isto signifique spoiler) são as de um menino sujo e explorado, quase um Oliver Twist redivivo, apertando na mão o símbolo da Força e olhando com esperança uma astronave que passa riscando o céu. No mundo cruel e opressivo de Trump e congêneres, não deixa de ser um alento.