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Diário Liberdade
Quinta, 26 Julho 2018 10:43 Última modificação em Segunda, 30 Julho 2018 17:06

EUA têm de falar com a Rússia: a verdadeira razão

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País: Rússia / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Asia Times

[Pepe Escobar, Tradução da Vila Vudu] Historiadores do futuro bem poderão identificar o discurso do presidente Putin da Rússia, dia 1º de março de 2018, como um dos marcos que virou o jogo no Novo Grande Jogo no século 21 na Eurásia. Os motivos disso estão detalhados em minúcias em Losing Military Supremacy: The Myopia of American Strategic Planning, um novo livro do analista militar/naval russo Andrei Martyanov.

Martyanov é excepcionalmente qualificado para a tarefa. Nascido em Baku, no início dos anos 1960s, foi oficial da Marinha da URSS até 1990. Mudou-se para os EUA em meados dos anos 1990s e trabalha atualmente como diretor de laboratório numa empresa da indústria aeroespacial. É membro de grupo extremamente rarefeito de altos analistas militares/navais especializados na relação EUA-Rússia.

De citações de Alexis de Tocqueville e Tolstoy de Guerra e Paz a revisitar o equilíbrio de poder durante a era soviética e depois dela, Martyanov rastreia cuidadosamente o processo pelo qual a única nação do planeta "que pode derrotar militarmente os EUA em guerra convencional" reagiu a uma situação na qual qualquer "diálogo significativo entre políticos da Rússia e dos EUA é virtualmente impossível."

O que se vê, em resumo, não é caso só de desconsiderar o ensinamento básico de Sun Tzu – "se você conhece o inimigo e conhece você mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas" –, mas sim e sobretudo, de húbris sem diluição, turbinada, dentre uma série de eventos de retroalimentação positiva delirante, iludida, que lhe veio do "tiro ao peru" que foi a Tempestade no Deserto contra o exército de Saddam Hussein, fortemente inflado e deploravelmente mal treinado.

O complexo industrial-militar-de inteligência-e-segurança dos EUA vive de um orçamento anual composto de mais ou menos US$1 trilhão. A única justificativa para esse gasto ensandecido é fabricar e manter um inimigo externo letal: a Rússia. Essa é a razão chave pela qual o complexo não admitirá que o presidente Donald Trump dos EUA sequer tente normalizar as relações com a Rússia.

Problema, só, é que agora o jogo mudou completamente, e os EUA enfrentam adversário formidável que, como Martyanov detalha atentamente, conta com cinco capacidades crucialmente decisivas.

1.      Capacidades de comando, controle, comunicações, computadores, inteligência, vigilância e reconhecimento iguais, se não superiores, às dos EUA.

2.     Capacidades para guerra eletrônica iguais ou melhores que as dos EUA.

3.     Novos sistemas de armas iguais ou melhores que os dos EUA.

4.     Sistemas de defesa aérea que são mais do que equivalentes ao poder aéreo dos EUA.

5.     Mísseis cruzadores de longo alcance subsônicos, supersônicos e hipersônicos que ameaçam o Império de Bases dos EUA e, mesmo, todo o território americano dos EUA.


E como chegamos até aqui?

Desbancar a mitologia militar dos EUA 

Martyanov argumenta que a Rússia, ao longo de toda a primeira década do milênio, consumiu tempo suficiente "se autodefinindo em termos de ciclos tecnológicos fechados, localização e manufatura."

A Alemanha, bem diferente disso, apesar de ter economia forte e desenvolvida, "não é capaz de projetar e construir, desde o rascunho, um jato de combate estado-da-arte"; a Rússia é. A Alemanha "não tem indústria espacial; a Rússia tem."

Quanto a tantos dos que passam, nos EUA, por "especialistas" russos, nunca previram que surgiriam os avanços tecnológicas que hoje estão aí; têm hoje "simplesmente nenhum recurso para avaliar a enorme diferença entre os processos envolvidos numa economia virtual monetizada e os processos envolvidos na manufatura do moderno sistema de controle informacional de combate, ou do jato de mais alta e nova tecnologia."

Martyanov produz várias frases ótimas. Por exemplo, "a Rússia (…) sem desnecessário espalhafato, lançou programa de total modernização da própria capacidade naval nuclear de contenção com os mísseis balísticos submarinos e estado-da-arte (ing. SSBNs) da classe Borey (Projetos 955 e 955A) (...) É o programa do qual a maioria dos 'analistas' entendidos de Rússia riram há alguns anos. Agora, já pararam de rir."

Um objetivo central do livro é desbancar a mitologia militar norte-americana. É trabalho que tem de incluir necessariamente uma reavaliação em profundidade da 2ª Guerra Mundial e um reexame de como a Marinha Soviética, já em meados dos anos 1970s, estava avançando para superar a diferença tecnológica que a separava da Marinha dos EUA, mesmo enquanto permanecia "força marítima de resistência para finalidades estritas de contenção". A Marinha Soviética, como a Marinha Russa hoje, "foi construída para um único objetivo: impedir qualquer ataque da OTAN vindo do mar."

Ao chegar à era pós-URSS, a Rússia, inevitavelmente, teve de produzir estratégia concertada para contra-atacar o eterno movimento de avanço na direção leste, da Organização do Tratado do Atlântico Norte – movimento que foi e é violação evidente do acordo (verbal) entre George Bush Pai e Mikhail Gorbachev.

E com isso chegamos ao argumento dos argumentos contra o mantra favorito na Av. Beltway do quartel-general do Departamento de Estado dos EUA, a dita "agressão russa". Ainda que a Rússia "tenha, como tem, capacidade para causar grave dano à OTAN", como lembra Martyanov, "por que a Rússia atacaria ou causaria dano a países europeus que valem muito mais para a Rússia, se forem livres e prósperos, do que se forem destruídos ou se sofrerem danos e forem, pelo menos em teoria, subjugados?"

O calibre do pesadelo de Brzezinski 

O Capítulo 7 do livro, que leva o título de "Tentativa e fracasso no movimento de se acomodar ao moderno realinhamento geopolítico", nos traz de volta a outro momento de virada: o Desfile da Vitória, em 2015, em Moscou, com Putin e o presidente da China Xi Jinping sentados lado a lado – exposição gráfica explícita do pior dos pesadelos de Zbigniew "Grande Tabuleiro de Xadrez" Brzezinski, das "duas mais poderosas nações eurasiana declarando-se totalmente independentes da visão [norte]americana do mundo."

E veio então a campanha russa na Síria; dia 7/10/2015, seis mísseis cruzadores 3M14 Kalibr foram lançados, em intervalos de cinco segundos, de pequenos navios lança-mísseis da Marinha da Rússia no Mar Cáspio, dirigidos a alvos na Síria. O porta-aviões USSTheodore Roosevelt e seu grupo de combate [uma formação de navios que acompanha os porta-aviões] compreenderam imediatamente a mensagem e – saíram zunindo do Golfo Persa.

Daí em diante, a mensagem foi amplificada: o Mediterrâneo Oriental, o Mar Negro, ou "as zonas de responsabilidade da Marinha Russa no Pacífico" estão-se convertendo em "zonas completamente vedadas à entrada de qualquer força adversária."

A lição da saga dos [mísseis] Kalibr-no-Cáspio, escreve Martyanov, é que "pela primeira vez ficou abertamente demonstrado, e o mundo viu e anotou, que o monopólio dos norte-americanos sobre todos os símbolos do poder havia sido oficialmente quebrado."

Dado que Martyanov mostra como "nos dois casos, no Donbass e especialmente na Síria, os russos expuseram o blefe geopolítico e militar os EUA", não resta dúvida de que essa interconexão Síria-Ucrânia – que analisei aqui [traduzido ao português no Blog do Alok] – é a pedra inaugural da atual "histeria anti-Rússia nos EUA, historicamente sem precedentes."

Significa que a bola – como a que Putin ofereceu a Trump em Helsinki – está no campo dos EUA. O que Martyanov descreve como "a combinação mortal da ignorância, húbris e desespero das elites norte-americanas contemporâneas", contudo, não pode ser subestimada.

Já durante a campanha eleitoral, Trump anunciou várias vezes que contestaria a (des)ordem internacional pós-Guerra Fria. Helsinki foi demonstração explícita de que o serviço de Trump, de "drenar o pântano", está diante de objeto gigante e inamovível, com o pântano decidido a não deixar ninguém vivo, para preservar seu poder de um trilhão de dólares.

Em contraste, a diplomacia russa, como foi explicitamente reafirmado por Putin essa semana mais uma vez, não tem dúvidas de que tudo é permitido, no que tenha a ver com evitar a Guerra Fria 2.0.

Mas, pelo sim pelo não, a nova geração de armas russas já foi agora formalmente divulgada pelo Ministério da Defesa, e algumas daquelas armas já são operacionais.

'Pearl Harbor encontra Stalingrado'

É perfeitamente claro que o presidente Trump está aplicando táticas Kissingerianas de dividir-para-governar, tentando reduzir a conectividade política/econômica russa com os dois outros polos de integração eurasiana, China e Irã.

Fato é que o pântano não é capaz sequer de contemplar O Grande Quadro – como atesta essa conversa imperdível  [ing.] entre dois dos raros norte-americanos que realmente conhecem a Rússia em profundidade. O professor Stephen Cohen e o professor John Mearsheimer vão diretamente à jugular: nada se pode fazer, quando a russofobia é a única lei vigente.

Mais uma e outra, e outra vez, é preciso voltar ao discurso de Putin dia 1º de março, no qual os EUA foram apresentados ao que só pode ser descrito, escreve Martyanov, como um "Pearl Harbor-encontra-Stalingrado militar-tecnológico."

Martyanov explica detalhadamente o modo como os mais novos sistemas russos de armas incluem ramificações estratégicas – e históricas – imensas. O que antes foi um gap entre os mísseis dos EUA e da Rússia é agora "um abismo tecnológico", com mísseis balísticos" capazes de trajetórias que tornam imprestáveis todos os tipos de defesa balística antimísseis."Star Wars e derivativos são hoje – para usar um trumpismo –"obsoletos."

O Kinzhal, como Martyanov o descreve, é fator "que vira completamente o jogo, geopoliticamente, estrategicamente, operacionalmente, taticamente e psicologicamente." Em resumo, "nenhum sistema de defesa aéreo moderno ou em estudos que é ou possa ser usado pela OTAN pode interceptar sequer um míssil, um, que fosse, com aquelas características."

Significa, dentre outras coisas – e nunca será demais destacar – que todo o Mediterrâneo Oriental pode ser fechado, para nem falar do Golfo Persa. E tudo isso vai muito além de assimetria; trata-se "da chegada definitiva de paradigma completamente novo" na tecnologia militar e nas guerras.

O livro de Martyanov, que é leitura indispensável, é a mais nova Arma de Destruição de Mitos. Diferente da versão Saddam Hussein, essa ADM existe. Como Putin lembrou  (em 7'10" no vídeo, traduzido aqui), "[naquele momento (2004)] ninguém quis nos ouvir." E agora? Estão ouvindo?

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