Apreender o seu argumento central é tão estranho para o nosso moderno modo de pensar acerca de civilização e barbárie que Hudson concordou comigo em que o livro é, na medida em que for compreendido, "devastador" tanto na intenção como no efeito. Ao longo das últimas três décadas, Hudson recolheu (sob os auspícios do Museu Peabody de Harvard) e a seguir sintetizou a erudição de assiriologistas americanos, britânicos, franceses, alemães e soviéticos (escrito com minúsculas a para denotar colectivamente todos os que estudam as várias civilizações da antiga Mesopotâmia, as quais incluem a Suméria, o Império Acadiano, o Ebla, a Babilónia e outras, assim como a Assíria com um A maiúsculo). Hudson demonstra que nós, globalistas do século XXI, temos sido moralmente cegados por um obscuro legado de cerca de vinte e oito séculos de história descontextualizada. Isso nos deixou, para todos os propósitos práticos, absolutamente ignorantes do modelo civilizacional correctivo que é necessário para nos salvarmos do afundamento numa negra barbárie neo-feudal.
Este modelo colectivo realmente existiu e floresceu no funcionamento económico de sociedades da Mesopotâmia durante o terceiro e segundo milénio AC. Ele pode ser denominado amnistia do Passado Limpo (Clean Slate), uma expressão que Hudson utiliza para abarcar a função essencial do que era chamado amargi e níg-si-sá em sumério, e urârum e mîðarum em acadiano (a linguagem da Babilónia), ðudûtu and kirenzi e, hurriano, para tarnumar em hitita, and deror em hebraico: É o apagamento necessário e periódico das dívidas de pequenos agricultores – necessário porque tais agricultores estão, em qualquer sociedade na qual sejam calculados juros sobre empréstimos, inevitavelmente sujeitos a serem empobrecidos, a seguir destituídos da sua propriedade e finalmente reduzidos à servidão (incluindo a servidão sexual de filhas e esposas) pelos seus credores. Estes últimos inevitavelmente procuram efectuar a polarização terminal da sociedade numa oligarquia de credores predatórios canibalizando uma subclasse que se afunda atolada em irreversível servidão da dívida (debt peonage). Hudson escreve: "Que é o que os credores realmente querem. Não meramente o juro como tal, mas o colateral – quaisquer que sejam os activos económicos que os devedores possuem, desde o seu trabalho à sua propriedade, acabando com as suas vidas" (p. 50).
E tal polarização é, pela definição de Hudson, barbárie. Pois qual é a condição mais básica da civilização, pergunta Hudson, senão a organização societal que efectua um "equilíbrio" duradouro mantendo "todos acima do nível de ruptura"?
"As sociedades mesopotâmicas não estavam interessadas em igualdade", disse-me ele, "mas elas eram civilizadas. E possuíam o refinamento financeiro suficiente para entender que juros sobre empréstimos aumentam exponencialmente, ao passo que o crescimento económico na melhor das hipóteses segue uma curva S. Isto significa que os devedores, se não forem protegidos por uma autoridade central, acabarão por se tornar escravos (bondservants) permanentes dos seus credores. Assim, os reis da Mesopotâmia regularmente resgatavam devedores que estavam a ficar esmagados pelas suas dívidas. Eles sabiam que precisavam fazer isto. Repetidamente, século após século, proclamavam Amnistias Passado Limpo (Clean Slate Amnesties) ".
Hudson também escreve: "Ao libertar indivíduos aflitos que haviam caído na servidão da dívida, e ao devolver aos cultivadores as terras que haviam perdido por dívida ou vendido sob pressão económica, estes actos reais mantinham um campesinato livre desejoso de combater pela sua terra e de trabalhar em projectos de edifícios públicos e de canais... Ao limpar a acumulação de dívidas pessoais, os governantes salvavam a sociedade do caos social que teria resultado da insolvência pessoal, da servidão por dívidas e da deserção militar" (p. 3).
Marx e Engels nunca apresentaram um tal argumento (nem tão pouco Adam Smith). Hudson destaca que eles nada sabiam destas antigas sociedades mesopotâmicas. Ninguém sabia naquela época. Quase todas as espécies de assiriologistas completaram suas escavações arqueológicas e análises filológicas durante o século XX. Por outras palavras, este livro não poderia ter sido escrito até que alguém digerisse as partes relevantes do vasto corpo deste conhecimento académico recente. E este alguém é Michael Hudson.
Assim, vamos reconsiderar a percepção fundamental de Hudson em termos mais incisivos. Nas antigas sociedades mesopotâmicas entendia-se que a liberdade era preservada pela protecção dos devedores. No que chamamos de Civilização Ocidental, isto é, na pletora de sociedades que se seguiram ao florescimento da poleis grega a partir do século VIII AC, exactamente o oposto se passou, com apenas uma única grande excepção (Hudson descreve o Império Bizantino do século X DC de Romano Lecapenus ): Para nós a liberdade tem sido entendida como sancionando a capacidade dos credores de exigir o pagamento de devedores sem restrição ou supervisão. Isto é a liberdade de canibalizar a sociedade. Isto é a liberdade de escravizar. Isto é, afinal das contas, a liberdade proclamada pela Escola de Chicago e a corrente convencional dos economistas americanos. E assim Hudson enfatiza que a nossa noção ocidental de liberdade tem sido, desde há cerca de vinte e oito séculos, orwelliana no sentido mais literal da palavra: Guerra é paz, Liberdade é escravidão, Ignorância é força. Ele escreve: "Uma dinâmica constante da história tem sido o impulso por parte das elites financeiras para centralizar o controle nas suas próprias mãos e administrar a economia de modos predatórios e extractivistas. Sua liberdade ostensiva é a expensas da autoridade governante e da economia como um todo. Como tal, ela é o oposto da liberdade do modo concebido nos tempos da Suméria" (p. 266).
E a nossa orwelliana noção neoliberal de liberdade irrestrita para o credor condena-nos mesmo desde o início de qualquer investigação que empreendamos de uma ordem económica justa. Toda e qualquer revolução que efectuarmos, por mais justa que seja na sua concepção, está assim destinada a falhar.
E estamos condenados, diz Hudson, porque temos sido moralmente cegados por 28 séculos de história desenraizada ou, como ele diz, descontextualizada. As verdadeiras raízes históricas da civilização ocidental não estão na poleis grega à qual faltava supervisão real para cancelar dívidas, mas nas sociedades mesopotâmicas da Era do Bronze que entendiam como vida, liberdade e terra seriam ciclicamente devolvidas aos devedores repetidas vezes. Mas, no oitavo século AC, juntamente com o alfabeto vindo do Oriente Próximo para os gregos, surgiu o conceito de cálculo de juros sobre empréstimos. Este conceito de juro exponencialmente crescente foi adoptado pelos gregos – e a seguir pelos romanos – sem o conceito equilibrador da amnistia Clean Slate.
Assim foi inevitável que, ao longo dos séculos de história grega e romana, números crescentes de pequenos agricultores se tornassem irremediavelmente endividados e perdessem a sua terra. Foi igualmente inevitável que os seus credores acumulassem enormes haveres em terra e se estabelecessem como oligarquias parasitas. Esta tendência inata para a polarização social decorrente do não esquecimento de dívidas é a maldição original e incurável da nossa civilização ocidental pós século VIII AC. Civilização ocidental, escabrosa marca de nascimento que não pode ser lavada ou extirpada. Neste contexto, Hudson cita o classicista Moses Finley com grande efeito: "....a dívida era um artifício deliberado da parte do credor para obter mão-de-obra mais dependente ao invés de um dispositivo para enriquecimento por meio de juros". Ele cita igualmente Tim Cornell: "O objectivo do 'empréstimo', o qual era assegurado na pessoa do devedor, era precisamente criar um estado de servidão" (p. 52 – Hudson anteriormente destacou este ponto nos dois volumes do colóquio por ele editado como parte de seu projecto de Harvard: Debt and Economic Renewal in the Ancient Near East (Dívida e renovação económica no antigo Oriente Próximo) e Labor in the Ancient World (Trabalho no mundo antigo).
Hudson é capaz de explicar que o longo declínio e queda de Roma começa não, como disse Gibbon, com a morte de Marco Aurélio, o último dos cinco bons imperadores, em 180 DC, mas quatro séculos antes, a seguir à devastação de Aníbal da Itália rural durante a Segunda Guerra Púnica (218-201 AC). Depois daquela guerra os pequenos agricultores da Itália nunca recuperaram a sua terra, a qual foi sistematicamente absorvida pelos prædia (note-se a conexão etimológica com predatório ), os latifundia, as grandes propriedades oligárquicas: latifundia Italiam ("as grandes propriedades destruíram a Itália", como observou Plínio o Velho. Mas entre os académicos modernos, como destaca Hudson, "Arnold Toynbee está quase sozinho ao enfatizar o papel da dívida na concentração da riqueza romana e da propriedade" (p. xviii) – e portanto na explicação do declínio do Império Romano.
"Arnold Toynbee", escreve Hudson, "descreveu a ideia de 'liberdade' da aristocracia romana como limitada à liberdade oligárquica de reis ou instituições cívicas suficientemente poderosas para conferir poder ao credor para endividar e empobrecer a cidadania em geral. "O monopólio de gabinete da aristocracia patrícia após o eclipse da monarquia [Hudson cita do livro de Toynbee, Hannibal's Legacy ] foi utilizado pelos patrícios como uma arma para manter o seu domínio sobre a parte do leão dos activos económicos do país; e a maioria plebeia da cidadania romana tinha de se esforçar para ganhar acesso a cargos públicos como um meio de assegurar uma distribuição mais equitativa da propriedade e uma restrição à opressão dos devedores pelos credores. Esta última tentativa fracassou", observa Hudson, "e a civilização europeia e ocidental ainda vive com as consequências" (p. 262).
Como Hudson põe em foco o grande quadro geral, o pulsar da história ocidental ao longo de milénios, é capaz de descrever o abismo económico entre a antiga civilização mesopotâmica e as sociedades ocidentais posteriores que começam com a Grécia e Roma: "No início deste século [isto é, o consenso académico até a década de 1970] entendia-se que os cancelamentos da dívida da Mesopotâmia eram semelhantes a seisachtheia de Solon de 594 AC libertando os cidadãos atenienses da servidão por dívida. Mas as proclamações reais do Oriente Próximo estavam baseadas num contexto sócio-filosófico diferente das reformas gregas que visavam substituir aristocracias fundiárias credoras com democracia. As exigências da populaça grega e romana pelo cancelamento da dívida podem ser correctamente chamadas de revolucionárias [itálico meu], mas as exigências sumérias e babilónicas eram baseadas numa tradição conservadora enraizada em rituais do calendário cósmico e das suas periodicidades bem ordenadas. A ideia mesopotâmica de reforma "não tinha a noção [Hudson cita aqui o livro de Dominique Charpin, Hammurabi of Babylon ] do que chamaríamos de progresso social. Ao invés, as medidas que o rei instituiu sob o seu mîðarum eram destinadas a trazer de volta a ordem original [itálicos meus]. As regras do jogo não foram mudadas, mas fora dada uma nova mão de cartas a toda a gente" (p. 133). Contraste com os gregos e romanos: "A antiguidade clássica", escreve Hudson, "substituiu a ideia cíclica de tempo e renovação social pela de tempo linear. A polarização económica tornou-se irreversível, não meramente temporária" (p. xxv). Por outras palavras: "A ideia de progresso linear, na forma de dívida irreversível e transferências de propriedade, substituiu a tradição da Idade do Bronze de renovação cíclica" (p. 7).
Após todos estes séculos, permanecemos ignorantes do facto de que nas profundidades das raízes da nossa civilização está contido o modelo correctivo do retorno cíclico – aquilo a que Dominique Charpin chama a "restauração da ordem" (p. xix). Continuamos a inundar-nos com mil milhões de variações de argumentos de venda para contrair cada vez mais empréstimos, com a exortação para aplicar cada vez mais no crédito, porque, como sabe, o futuro é tão brilhante que preciso usar óculos escuros.
Em parte alguma, mostra Hudson, é mais evidente que estamos cegados por um entendimento desenraizado, descontextualizado, da nossa história do que na nossa ignorância da carreira de Jesus. Daí o título do livro: And Forgive Them Their Debts, E perdoa-lhes as suas dívidas e a ilustração da capa com Jesus a açoitar os prestamistas – os credores que não perdoavam dívidas – no templo. Durante séculos falantes do inglês recitaram a Oração do Senhor com a suposição de que estavam meramente a pedir o esquecimento das suas ofensas (trespasses), seus pecados teológicos: "... e esqueça nossas ofensas, assim como nós esquecemos quem nos ofendeu..." é a tradução apresentada na Versão Padrão Revista da Bíblia. O que se perde na tradução é o facto de que Jesus veio "pregar o evangelho (preach the gospel) aos pobres... pregar o Ano do Senhor aceitável": Ele veio, por outras palavras, proclamar um Ano Jubileu, uma restauração do deror para os devedores. Ele veio instituir uma Amnistia Passado Limpo (que é o que a palavra hebraica denota neste contexto).
Assim, considere-se literalmente a passagem [em grego] da Oração do Senhor: "... e remover para nós as nossas dívidas". A tradução latina não é gramaticalmente idêntica à grega, mas também mostra a palavra grega reveladoramente traduzida como debita: ... et dimitte nobis debita nostra : "... e livrai-nos (dimitte) das nossas dívidas (debita)". Consequentemente havia, da parte da classe credora, uma razão prática e premente para condenar Jesus à morte: Ele estava a exigir que restaurassem a propriedade que haviam avidamente tomado dos seus devedores. E após a sua morte havia igualmente uma razão premente e prática para tornar inoperante a sua proclamação do Jubileu de uma Amnistia Passado Limpo, o que equivale a dizer tornada meramente teológica. Assim os ricos podiam continuar a oprimir os pobres para todo o sempre. Amen.
Por este livro ser profundo, é escrito de modo tão denso que é muito difícil lê-lo. Levei seis dias, o que incluiu seis ou mais horas de conversações excelentes e esclarecedoras com o próprio autor, para penetrá-lo. Muitas vezes recorri ao livro de David Graeber, Debt: The First 5.000 Years , quando tive dificuldade em acompanhar alguns dos argumentos de Hudson. (Graeber e Hudson foram amigos durante dez anos, contou-me Hudson, e Graeber, ao escrever Debt; The First 5.000 Years, apoiou-se na erudição de Hudson para relatar a teoria económica da antiga da Mesopotâmia, cf. p. xxiii). Escrevi a presente resenha do livro a fim de proporcionar alguma ajuda a outros leitores: não posso enfatizar demasiado o quanto este livro é de facto um verdadeiro terramoto, mas é preciso muito trabalho intelectual para digeri-lo.
ADENDA: Risco moral (Moral Hazard)
Depois de enviar um rascunho desta resenha a um amigo na noite passada ele respondeu-me com esta pergunta:
– Será que cancelamentos de dívida não retirariam quaisquer incentivos às pessoas para reembolsarem empréstimo e, portanto, retirariam incentivos para conceder empréstimos? Pessoas que não ouviram antes o argumento e lêem então a sua resenha provavelmente ficarão cépticas no início.
Eis a resposta de Michael Hudson:
– Credores argumentam que se você esquecer dívidas para uma classe de devedores – digamos que empréstimos a estudantes – haverá alguns "free riders" e que as pessoas esperarão ter maus empréstimos cancelados. Isto é chamado um "risco moral", pois cancelamentos de dívida são um risco para a economia e, portanto, imorais.
Isto é um exemplo típico da linguagem dupla orwelliana engendrada por empregados de relações públicas para os possuidores de títulos e os bancos. O risco moral para toda economia é a tendência para as dívidas crescerem para além da capacidade dos devedores de pagarem. Os primeiros incumpridores são vítimas de hipotecas lixo e devedores estudantes, mas de longe as maiores vítimas são os países que tomam empréstimos do FMI em programas de "estabilização" monetária (isto é, desestabilização económica).
É moral para os credores terem de arcar com o risco de fazer maus empréstimos, definidos como aqueles em que o devedor não pode pagar sem perder a propriedade, status ou tornar-se insolvente. Um mau empréstimo internacional a um governo é aquele em que o governo não pode pagar excepto impondo austeridade à economia até um ponto em que a produção cai, o trabalho é obrigado a emigrar para encontrar emprego, o investimento de capital declina e os governos são forçados a pagar credores pela privatização e liquidação do domínio público a monopolistas.
A analogia na Babilónia da Idade do Bronze era uma fuga de devedores da terra. Hoje, desde a Grécia até à Ucrânia, é uma fuga de mão-de-obra qualificada e mão-de-obra jovem a fim de encontrar trabalho no estrangeiro.
Nenhum devedor – quer seja uma classe de devedores como estudantes ou vítimas de hipotecas lixo predatórias, ou um governo inteiro e uma economia nacional – deveria ser obrigado a seguir o caminho do suicídio económico e da autodestruição a fim de pagar credores. A definição de soberania – e, portanto, de direito internacional – deveria ser colocar a solvência nacional e a autodeterminação acima dos ataques financeiros estrangeiros. Ceder o controle financeiro deveria ser encarado como uma forma de guerra, na qual os países têm o direito legal de resistir como "dívida odiosa" sob o direito moral internacional.
O princípio financeiro moral básico deveria ser que os credores arcassem com o risco de fazerem maus empréstimos que o devedor não pudesse pagar – tal como os empréstimos do FMI à Argentina e à Grécia. Risco moral é colocar exigências do credor acima da sobrevivência da economia.
16/Novembro/2018
O original encontra-se em www.nakedcapitalism.com/2018/11/145003.html . Tradução de JF.