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Diário Liberdade
Sexta, 21 Abril 2017 18:48

O ofício de servente

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Ilka Oliva Corado

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Ultimamente defensores dos direitos humanos nos chamam de assistentes domésticas, para diminuir o golpe, mas vamos às coisas pelo seu nome: somos serventes, nosso ofício é servir.


Partindo daí, podemos esmiuçar a gama de abusos que vivemos aqueles que trabalhamos no serviço doméstico de babá e de faxineira. Não importa o país, a realidade dos serventes é a mesma em todos os lados. Não vamos dar banhos de pureza e apontar os Estados Unidos como os causadores de todos os nossos males. Na Índia, existem as castas, na América Latina as mentes colonizadas, e assim vamos por cada país e continente, cada um com seus próprios males.

Não se trata da cor, da nacionalidade nem do idioma, se trata de quem tem o poder, e quem tem o poder abusa e discrimina, com conhecidos e desconhecidos. O ofício de babá e empregada doméstica é o mesmo, só varia o nome: em ambos o trabalho é servir. E digo servir com todo o peso da palavra: de dia e de noite. Quando as crianças estão na escola ou nas aulas particulares, as babás nos encarregamos de limpar a casa, a sala de jogos, de cozinhar, lavar a roupa: o ofício doméstico. O da empregada doméstica é igual e ambas são tratadas como móveis velhos. Porque uma limpa panelas sujas e a outra banheiros sujos: ambas trabalham no meio da merda.

As babás somos as mães emergentes, estão aí o tempo todo porque as mães estão em suas aulas de ioga, tomando chá com amigas ou viajando pelo mundo. Algumas, pouquíssimas, são as que trabalham. Então as babás, sem querer, como consequência de nosso trabalho, damos abraços, entendemos emoções, cuidamos se estão doentes, contamos estórias e nos abrimos e damos apoio moral a crianças que aprendemos a querer como nossas e, que no futuro, quando se deem conta de nosso papel em sua casa e na sociedade, nos tratarão como os móveis velhos descartáveis. Porque é o normal, porque são parte do círculo da cultura do capital.

As serventes conhecemos a intimidade das famílias, até do que não querem que ninguém saiba, conhecemos temperamentos, vícios, medos, vaidades, vazios e pretensões. Porque estamos aí o tempo todo, invisíveis, móveis velhos que se movem de um lugar a outro para que não atrapalhem. Trabalhamos em silêncio, a maneira de passar despercebidas porque o que tem o que contar uma servente? De que forma uma servente pode interagir com seus empregadores? Máximo quando eles têm berço de ouro, e pergaminhos e se empanturram com o creme e nata da sociedade. De nenhuma. A servente não sente, não pensa, não tem emoções, está aí para servir, jamais é vista como pessoa, não existe como ser humano.

As serventes não nos cansamos, nunca temos direito a adoecer, a estar deprimidas, a sonhar, a sentir saudades, não temos direito tampouco aos benefícios trabalhistas, as férias são para outros não para nós. Não temos direito às emergências porque então, quem vai limpar os quartos, lavar os pratos, passar a camisa do patrão, fazer o café da manhã e esfregar o chão? Quem irá pegar o correio, servir a mesa e ir ao supermercado? Quem cuidará da febre das crianças? Quem limpará o vômito do senhor que chegou bêbado de madrugada?

E se apesar do abuso tudo ultrapassa os extremos inconcebíveis, as empregadas domésticas também somos abusadas sexualmente pelo empregador, filhos dos empregadores, amigos dos empregadores e sob a tutela da empregadora que finge que não vê. Porque no final das contas os homens são assim, sedentos de prazer o tempo todo e melhor foder uma servente do que uma trabalhadora sexual que possa transmitir doenças... E na maioria dos casos essa empregada doméstica é uma menina que não passa dos 12 anos.

As empregadas domésticas não temos direito às dores menstruais, porque somos máquinas, e tampouco a nos angustiar quando nossos filhos estão doentes em casa ou na creche onde deixamos para ir trabalhar. Não temos direito de lembrar de nossos pais e irmãos que deixamos no povoado quando fomos para a capital e emigramos para outro país. Temos a obrigação de estar inteiras para servir aos nossos empregadores, vivemos por eles e para eles, nossas vidas não existem, não têm direito de existir. Tampouco o aniversário, nem o natal, nem os dias festivos, nós estamos de guarda todos os dias do ano, toda hora.

As empregadas domésticas guardamos segredos íntimos que qualquer amigo de nossos empregadores daria o braço direito para saber. Nunca nos agradecem pela nossa ética – o que pode conhecer de ética uma “limpa-privadas”? O que pode ela saber sobre pintura, artem leitura, vinhos, de queijos finos e comidas gourmet? Uma coisa é as cozinharmos e servirmos, outra coisa é interagir.

O que uma servente pode saber sobre roupa de marca, loções caras e celulares? Talvez nada, mas é a que cuida da maior preciosidade dos empregadores: seus filhos. Nunca dariam seus automóveis a uma serviçal para ir ao supermercado ou à farmácia, mas lhes confiam seus filhos todos os dias e lhes dão as chaves de sua casa. Um automóvel pode arranhar, sujar, bater, mas que valor têm seus filhos para que os deixem com uma completa estranha que não sabe nem o idioma, nem marcar um número de emergência, além de ser indocumentada, caso seja imigrante. Como podem confiar seus filhos a uma ignorante carente de conhecimentos básicos para sobreviver na sociedade do ego e do oportunismo?

Jamais lhe emprestariam seus carros do último modelo mas permitem que seja a que cozinhe e limpe sua casa e leve as crianças à escola. Que encontre os dildos jogados no chão ou entre os lençóis e os lave e coloque nas gavetas onde se guardam. Intimidades que só as empregadas domésticas conhecemos. E não temos direito a carinho, porque os móveis não sentem, essas crianças não são nossas, um dia crescerão e lembrarão de nós com um chute no traseiro e com uma despedida sem aviso, de um dia para o outro. Como se de um dia para o outro alguém pudesse esquecer as recordações, cortar pela raíz o afeto e assimilar que tal pessoa foi apenas um móvel velho que chegou a hora de terminar na lata do lixo.

Que descanso precisará um pária que trabalha como mula? Nenhum, porque nasceu para isso, carregar como uma mula, de geração em geração.

Por isso sentem tanta falta quando uma empregada doméstica rompe o ciclo, abre as asas e voa. Com sacrifício estuda e se converte em uma profissional, conhece o mundo das artes, se converte em negociante e empresária, ou volta aos campos de onde saiu, para fazê-los florescer. Mas para cada servente que consegue sair do inferno, há milhares que secam e morrem lentamente no abuso e na exclusão. E todas têm um nome próprio, famílias, raíz, identidade, sonhos. E todas sentem no mais profundo de seu ser e têm paixões e amam e creem, porque são seres humanos.

Algum de vocês, queridos leitores, alguma vez conversou com uma empregada doméstica, olhando-a olho no olho e a tratou de igual por igual? Alguma vez se colocou em seu lugar e se perguntou que seria da sua vida se tivesse que trabalhar no serviço doméstico? O que mudaria? Por que não muda para os outros? E não falemos de coragem, falemos de humanidade e humildade.

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