Parece difícil aceitar que os centos de pessoas que estavam nas ruas, nas praças, nos centros de votação, estiveram a pensar que a repressão da polícia espanhola e da guardia civil fosse ser tão brutal, desproporcionada e violenta. Mas aceitemos –para continuarmos com este argumento- que foi assim: centos, miles de pessoas por toda Catalunha sabiam que lhes iam dar “ostias como panes” (alegre expressão espanhola que circulou dias antes polas redes sociais), e mesmo assim decidiram continuar com a sua tática de desobediência e resistência pacífica e não violenta. A sério que nenhuma das pessoas que emprega esse argumento do “ya estaban avisados” é capaz de refletir, durante cinco minutos, dos motivos que teriam para fazê-lo? Porque, a verdade, entre as pessoas espancadas, violentadas, agredidas polas forças e corpos de seguridade do estado espanhol, a imensa maioria eram pessoas que não pareciam estar fascinadas ante a violência, nem mantinham atitudes ameaçadoras, nem realizaram nenhum intento de atacar a esses “defensores de la ley y el orden”. A grande, imensa maioria das pessoas eram dessas que qualquer meio de comunicação, noutras circunstâncias, qualificaria como “normais”: pessoas trabalhadoras, estudantes, desempregados, avós, mães, pães, filhos, vizinhança diversa, ampla e plural, com diferentes preocupações vitais, com vidas e famílias, que saíram ás ruas não para receber óstias, mas para defender umas ideias e umas convicções que julgam legítimas e democráticas. Então, sabendo que iam ser agredidos, reprimidos, maltratados até limites que possivelmente nunca pensaram viver, qual é o motivo que os levou a ficar na espera?
Não, é impossível aceitar que “ya sabían lo que les iba a pasar”. Possivelmente suspeitavam que fosse haver momentos de tensão, de confusão, momentos “tumultuosos” (outra expressão espanhola que tivo sucesso nos dias anteriores). Mas em nenhum momento ninguém pensou que a resposta do Governo espanhol ia ser brutal. Tão brutal que, de supetão, e nada mais começar, essas pessoas (mas também quem estava a ver as imagens e as fotos) entenderam porque estavam lá: para ganhar a batalha. E a estavam a ganhar. Pudemos ver pessoas apaleadas, espancadas, maltratadas,... mas também pessoas vitoriosas. O editorial do “The Guardian” (publicado às 20:00h do dia 1 de outubro) resume-o bem: “the Spanish state has lost”.
Mas não nos detenhamos nisto. Aceitado que o “argumento” do “ya lo sabían” é certo, continuemos com ele e entendamos que também permite a leitura de que o Estado espanhol com todas as suas instituições e responsáveis, entre elas, evidentemente, o Governo espanhol, também sabiam “lo que iba a passar”. O Governo espanhol, com Rajoy à cabeça, sabia bem que, frente a toda a tropa policial enviada a Catalunha, esta ia topar com centos, milheiros de pessoas dispostas a manterem-se nas ruas, nas praças, nos colégios e demais centros eleitorais, prontos a fazerem-lhe frente à repressão de maneira pacífica. E, sabendo isto, sendo perfeitamente consciente disto, decidiu dar a ordem de uma intervenção violenta, brutal e “exemplarizante”.
E isto deve-nos fazer refletir. O Governo fartou-se de repetir nas semanas prévias que o referendum era ilegal, que não tinha validez e que não seria reconhecido, nem interna nem internacionalmente. O Governo deu por desarticulado três ou quatro vezes a convocatória: não haveria urnas, nem papeletas, nem censo, nem sindicatura eleitoral, nem se poderiam constituir as mesas... Desacreditaram a convocatória dizendo que era um “piquenique”, que era mentira, que era falso, pura performance, que, em definitiva, não era um referendum. E utilizaram como um dos grandes argumentos que praticamente nenhum organismo, instituição ou autoridade internacional apoiava ou respaldava a sua celebração. E, ainda assim, decidiram que o nível de repressão de aquilo que não era um referendo, tinha que ser elevado, desproporcionado e, sem dúvida, selvagem. Por quê? Se “sabían lo que iba a passar”, por que permitiram que passasse? Por que necessitavam que todos os meios de comunicação transmitissem imagens de como o Estado reclamava e exercia, mais uma vez, o monopólio da violência? Que necessidade tinha o Governo espanhol de contar por centenas os feridos (893 no reconto no momento que escrevo estas linhas), vários deles de gravidade? É incompreensível especialmente sabendo qual ia ser o esquálido e ridículo resultado: nunca poderiam pechar todos os centros eleitorais, nem sequer a metade, nem muito menos. O Govern catalão fala de “quase 400” centros de votação pechados ou “visitados” polas diversas forças policiais. Na análise que o dia 2 publica Ignacio Escolar em “eldiario.es”, fala de 319 centros (quer dizer, o 14% do total!!!). Mas é que a polícia espanhola e a guarda civil reconhecem ter “pechado” 92 centros, correspondendo-lhe o resto (227) à polícia catalã, os mossos de esquadra. Surpreendente, tendo em conta que não há uma soa imagem de cargas policiais, ataques ou atitudes violentas por parte dos mossos. Quer dizer que para fechar 92 centros eleitorais, as forças policiais espanholas provocaram 893 feridos: quase 10 feridos (9,7) por centro. Proporcionalidade? U-la?
No dia depois, ficam claros os motivos que tinham as pessoas que resistiram e protegeram as urnas e o seu direito a decidir: ganhar a batalha. Mas, qual é o motivo do Estado espanhol para lançar-se nessa espiral de repressão, nesse exercício de violência gratuita? Quê ganhou, ou quê pensava ganhar?
Qual é o sentido, o significado, o valor das imagens do dia 1 em Catalunha para o Estado espanhol e o seu governo? A batalha interna, em Catalunha, parece evidente que a perderam. A internacional, vista as reações na imprensa e diversas declarações de “lideres” europeus, e mesmo do Alto Comissionado da ONU para os Direitos Humanos, parece que vão ter problemas para ganhá-la. Ganharam alguma cousa em Espanha? Sem dúvida. Mas quê?