Parece um símbolo pérfido para um partido no qual milhões de britânicos agora investem suas esperanças políticas. Outrora caça guardada de Tony Blair, o Partido Trabalhista agora é liderado por Jeremy Corbyn, cuja carreira tem sido muito diferente e é rara na política do establishment britânico.
A discursar na conferência, a activista Naomi Klein descreveu a ascensão de Corbyn como "parte de um fenómeno global. Vimos isto na histórica campanha de Bernie Sanders nas primárias dos EUA, impulsionada pela nova geração sabedora de que a política centrista não lhes oferece qualquer espécie de futuro seguro".
Na realidade, no fim das eleições primárias dos EUA no ano passado Sanders levou os seus seguidores para os braços de Hillary Clinton, uma belicista liberal vinda de uma longa tradição no Partido Democrata.
Como secretária de Estado do presidente Obama, Clinton presidiu a invasão da Líbia em 2011, a qual levou a uma fuga avassaladora de refugiados para a Europa. Ela regozijou-se com o assassínio abjecto do presidente da Líbia. Dois anos antes, Clinton avalizou um golpe que derrubou o presidente democraticamente eleito das Honduras. Que ela tenha sido convidada para ir a Gales em 14 de Outubro a fim de receber um doutoramento honorário da Universidade de Swansea por ser [considerada] "sinónimo de direitos humanos" é algo inconcebível.
Tal como a Clinton, Sanders é um guerreiro frio e um "anti-comunista" obsessivo com uma visão de proprietário do mundo [que está] para além dos Estados Unidos. Ele apoiou o assalto ilegal à Jugoslávia de Bill Clinton e Tony Blair em 1998, apoiou as invasões do Afeganistão, Síria e Líbia, assim como a campanha de terrorismo de Barack Obama por meio de drones. Ele apoia a provocação à Rússia e concorda em que o denunciante Edward Snowden deveria ser submetido a julgamento. Ele chamou o falecido Hugo Chavez – um social-democrata que venceu múltiplas eleições – de "um ditador comunista morto".
Enquanto Sanders é um dos habituais políticos liberais americanos, Corbyn pode ser um fenómeno, com o seu apoio infatigável a vítimas das aventuras imperiais americanas e britânicas e a movimentos de resistência popular.
Exemplo: nas décadas de 1960 e 1970 os habitantes das ilhas Chagos foram expulsos do seu lar, uma colónia britânica no Oceano Índico, por um governo trabalhista. Toda uma população foi sequestrada. O objectivo era dar lugar a uma base militar dos EUA na ilha principal de Diego Garcia: um acordo secreto pelo qual os britânicos foram "compensados" com um desconto de US$14 milhões no preço de um submarino nuclear Polaris.
Tive muito a ver com os ilhéus das Chagos e filmei-os no seu exílio na ilha Maurícia e nas Seychelles, onde sofreram e alguns deles "morreram de tristeza", como me disseram. Eles encontraram um campeão político num membro trabalhista do Parlamento, Jeremy Corbyn.
Assim o foi com os palestinos. E da mesma forma com iraquianos aterrorizados pela invasão do seu país em 2003 por um primeiro-ministro trabalhista. Assim o fizeram outros que lutaram pela libertação da teia do poder ocidental. Corbyn apoiou os amigos de Hugo Chavez, os quais trouxeram mais do que esperança a sociedades subvertidas pela grande besta estado-unidense.
E ainda assim, agora que Corbyn está mais próximo do poder do que alguma vez poderia ter imaginado, a sua política externa permanece um segredo.
Por segredo quero dizer que tem havido retórica e pouco mais. "Devemos colocar nossos valores no cerne da nossa política externa", disse ele na conferência trabalhista. Mas o que são estes "valores"?
Desde 1945, tal como os conservadores, os trabalhistas britânicos têm sido um partido imperial, obsequioso para com Washington: um registo exemplificado pelo crime nas ilhas Chagos.
O que mudou? Estará Corbyn a dizer que o Partido Trabalhista se desligará da máquina de guerra dos EUA, do aparelho de espionagem estado-unidense e dos bloqueios económicos dos EUA que marcam a humanidade?
Seu secretário sombra para a política externa, Emily Thornberry, diz que um governo Corbyn "colocará os direitos humanos outra vez no cerne da política externa britânica". Mas os direitos humanos nunca estiveram no cerne da política externa britânica – só os "interesses", tal como Lord Palmerston declarou no século XIX: os interesses daqueles no cume da sociedade britânica.
Thornberry citou o falecido Robin Cook o qual em 1997, como primeiro secretário da política externa de Tony Blair, prometeu uma "política externa ética" que "faria outra vez da Grã-Bretanha uma força para o bem no mundo".
A história não se compadece com a nostalgia imperial. A divisão da Índia pelo governo trabalhista, em 1947, recentemente comemorada, – com uma fronteira desenhada às pressas por um advogado em Londres, Gordon Radcliffe, o qual nunca estivera na Índia e a ela nunca retornou – levou a um banho de sangue numa escala genocida.
Trancado numa mansão solitária, com polícia noite e dia
A patrulhar os jardins para manter à distância os assassinos,
Ele dava toda atenção à tarefa de estabelecer o destino
De milhões. Os mapas à sua disposição estavam ultrapassados
E os Resultados do Censo quase certamente incorrectos,
Mas não havia tempo para verificá-los, nem tempo para inspeccionar
Áreas contestadas. O clima era horrivelmente quente,
E um acesso de disenteria mantinha-o constantemente ocupado,
Mas em sete semanas estava tudo feito, as fronteiras decididas,
Um continente, para o melhor ou o pior, dividido.
— W.H. Auden, "Partition".
Foi o mesmo governo trabalhista (1945-51), liderado pelo primeiro-ministro Clement Attlee – um "radical" pelos padrões de hoje – que despachou para Saigão o general Douglas Gracey, do exército imperial britânico, com ordens de rearmar os japoneses derrotados fim de impedir os nacionalistas vietnamitas de libertarem o seu próprio país. Assim foi ateada a mais longa guerra do século.
Foi um secretário trabalhista de assuntos externos, Ernest Bevin, cuja política de "mutualidade" e "parceria" com alguns dos mais odiosos déspotas do mundo, especialmente no Médio Oriente, que forjou relacionamentos que perduram até hoje, muitas vezes contornando e esmagando os direitos humanos de comunidades e sociedades inteiras. Por causa de "interesses" britânicos – petróleo, poder e riqueza.
Na "radical" década de 1960, o secretário trabalhista da Defesa, Denis Healey, estabeleceu a Defence Sales Organisation (DSO) especificamente para promover o comércio de armas e fazer dinheiro com a venda ao mundo de armas letais. Healey disse no Parlamento: "Apesar de concedermos a mais alta importância a alcançar progressos no campo do controle de armas e do desarmamento, devemos também adoptar passos práticos para que possamos garantir que este país não deixe de assegurar a sua fatia legítima deste mercado valioso".
O pensamento duplo era essencialmente trabalhista. Quando posteriormente perguntei a Healey acerca do "mercado valioso" ele afirmou que a sua decisão não fazia diferença para o volume das exportações militares. De facto, ela levou a uma quase duplicação da fatia britânica no mercado de armas. Hoje, a Grã-Bretanha é o segundo maior vendedor de armas da terra, vendendo armas e aviões caça, metralhadoras e veículos de "controle de tumultos" para 22 dos 30 países que na lista do próprio governo britânico eram violadores dos direitos humanos.
Será que isto vai cessar com um governo Corbyn? O modelo favorecido – a "política externa ética" de Robin Cook – é revelador. Tal como Jeremy Corbyn, granjeou reputação como deputado obscuro e crítico do comércio de armas. "Sempre que são vendidas armas", escreveu Cook, "há uma conspiração tácita para ocultar a realidade da guerra" e "é um truísmo que toda guerra nas últimas duas década foi combatida por países pobres com armas fornecidas por países ricos".
Cook destacou a venda de caças Hawk britânicos à Indonésia como "particularmente perturbadora". A Indonésia "é não só repressiva como realmente está em guerra em duas frentes: no Timor Leste, onde talvez um sexto da população tenha sido massacrada ... e na Papua Ocidental, onde confronta um movimento indígena de liberação".
Como secretário de assuntos externos, Cook prometeu "uma revisão completa das vendas de armas". O então Prémio Nobel da Paz, o bispo Carlos Belo de Timor-Leste, apelou directamente a Cook: "Por favor, imploro-lhe, não apoie nem mais um minuto um conflito o qual sem estas vendas de armas nunca poderia ter sido prosseguido e não por muito mais tempo".
Ele referia-se ao bombardeamento indonésio de Timor-Leste com Hawks britânicos e ao massacre do seu povo com metralhadoras britânicas. Não recebeu resposta.
Na semana seguinte Cook convocou jornalistas ao Foreign Office para anunciar sua "declaração de missão" em favor de "direitos humanos num novo século". Este evento de relações públicas incluiu os habituais briefings privados para jornalistas seleccionados, incluindo a BBC, no qual responsáveis do Foreign Office mentiram ao dizer que "não havia evidência" de que caças Hawk britânicos tivessem sido utilizados em Timor Leste.
Poucos dias depois, o Foreign Office divulgou os resultados da "revisão completa" da política de vendas de armas de Cook. "Não era realista ou prático", escreveu Cook, "revogar licenças que eram válidas e estavam em vigor no momento da vitória eleitoral do Partido Trabalhista". O ministro da Defesa de Suharto, Edi Sudradjat, disse que já estavam encaminhadas conversações com a Grã-Bretanha para a compra de mais 18 caças Hawk. "A mudança política na Grã-Bretanha não afectará nossas negociações", disse ele. Estava certo.
Hoje, substitua Indonésia por Arábia Saudita e Timor-Leste por Iémen. Aviões militares britânicos – vendidos com a aprovação tanto do governo Conservador como do Trabalhista e construídos pela firma cujo vídeo promocional teve lugar de destaque na conferência de 2017 do Partido Trabalhista – estão a extirpar a vida do Iémen, um dos mais empobrecidos países do mundo, onde metade das crianças está desnutrida e há a maior epidemia de cólera dos tempos modernos.
Hospitais e escolas, casamentos e funerais foram atacados. Em Riad, noticia-se, pessoal militar britânico treina os sauditas na selecção de alvos.
No manifesto actual do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn e seus colegas prometem que "o Labour exigirá uma investigação abrangente, independente, conduzida pela ONU, às alegadas violações ... no Iémen, incluindo ataques aéreos a civis pela coligação lideradas pelos sauditas. Suspenderemos imediatamente quaisquer novas vendas de armas para utilização no conflito até que a investigação esteja concluída".
Mas a evidência dos crimes da Arábia Saudita no Iémen já está documentada pela Amnistia e outros, nomeadamente pela corajosa reportagem da jornalista britânica Iona Craig . O dossier é volumoso.
O Labour não promete travar as exportações de armas para a Arábia Saudita. Ele não diz que a Grã-Bretanha retirará seu apoio a governos responsáveis pela exportação do jihadismo islamita. Não há compromisso para desmantelar o comércio de armas.
O manifesto descreve um "relacionamento especial [com os EUA] baseado em valores partilhados ... Quando a actual administração Trump preferir ignorá-los ... não teremos medo de discordar".
Como sabe Jeremy Corby, não se trata meramente de "discordar" ao lidar com os EUA. Os EUA são uma potência predadora, perigosa, que não deve ser encarada como um aliado natural de qualquer estado que defenda direitos humanos, tanto faz que seja Trump o presidente ou outro qualquer.
Quando Emily Thornberry, no discurso da conferência, ligou a Venezuela às Filipinas como "regimes cada vez mais autocráticos" – slogans destituídos de factos e que ignoram o papel subversivo dos EUA na Venezuela – ela estava conscientemente a jogar a favor do inimigo: uma táctica com a qual Jeremy Corbyn será familiar.
Um governo Corbyn dará o direito de retorno aos ilhéus das Chagos. Mas o Labour nada diz acerca de renegociar a renovação do acordo por 50 anos que a Grã-Bretanha acaba de assinar com os EUA e que lhe permite utilizar a base de Diego Garcia de onde bombardearam o Afeganistão e o Iraque.
Um governo Corbyn reconhecerá "imediatamente o estado da Palestina". Mas há silêncio sobre se a Grã-Bretanha continuará a armar Israel, continuará a anuir com o comércio ilegal nos "colonatos" ilegais de Israel e tratará Israel simplesmente como uma parte combatente, ao invés de um opressor histórico com a imunidade dada por Washington e Londres.
Sobre o apoio britânico aos actuais preparativos de guerra da NATO, o Partido Trabalhista vangloria-se de que "o último governo trabalhista gastou mais do que a referência de 2 por cento do PIB" com a NATO. Ele diz: "Os gastos dos conservadores colocaram a segurança da Grã-Bretanha em risco" e promete promover as "obrigações" militares britânicas.
De facto, a maior parte dos £40 mil milhões que a Grã-Bretanha gasta actualmente com os militares não é para a defesa territorial do Reino Unido mas sim para propósitos ofensivos a fim de reforçar "interesses" britânicos tal como definidos por aqueles que tentaram enlamear Jeremy Corbyn como não patriótico.
Se os inquéritos de opinião forem confiáveis, a maior parte dos britânicos está bem à frente dos seus políticos, conservadores e trabalhistas. Eles aceitariam impostos mais altos para pagar por serviços públicos; querem o Serviço Nacional de Saúde restaurado plenamente. Querem empregos, salários, habitação e escolas decentes; não odeiam estrangeiros mas ressentem-se com trabalho explorador. Eles não têm uma memória afectuosa de um império no qual o Sol nunca se põe.
Opõem-se à invasão de outros países e encaram Blair como um mentiroso. A ascensão de Donald Trump recordou-os da ameaça que os Estados Unidos podem ser, especialmente com o seu próprio país a reboque.
O Partido Trabalhista é o beneficiário deste estado de espírito, mas muitas das suas promessas – certamente em política externa – estão ressalvadas e comprometidas, o que sugere, para muitos britânicos, mais do mesmo.
Jeremy Corbyn é ampla e adequadamente reconhecido pela sua integridade; opõe-se à renovação das armas nucleares do Trident; o Partido Trabalhista apoia isto. Mas ele concedeu posições no gabinete sombra a deputados pró guerra que apoiam o blairismo, que tentaram livrar-se dele e que o maltrataram como "inelegível".
"Agora somos a corrente política principal" disse Corbyn. Sim, mas a que preço?
Fonte: Resistir.