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Diário Liberdade
Sábado, 20 Agosto 2016 19:05 Última modificação em Segunda, 22 Agosto 2016 17:03

Rio Olímpico: um ontem à la Barcelona; um amanhã à la Atenas

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Rafael Silva

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[Rafael Silva] Cidade “Maravilhosa” ao menos pelo que resta de sua estonteante natureza, o Rio de Janeiro vive o maior espetáculo de sua história: os XXXI jogos olímpicos da Era Moderna. A maioria dos turistas que estão na cidade para o megaevento, e até mesmo os cariocas estão dizendo que está “tudo bem”; que o Rio está surpreendendo positivamente. Mas não nos enganemos, esse “tudo bem” significa no máximo que o sempiterno e mui conhecido caos local está devidamente cenografado em forma de ordem mínima e eventual. De qualquer forma, palmas para o talento carioca para as aparências!


O próprio Prefeito da cidade, Eduardo Paes, disse publicamente que “O problema do Rio, e também o do Brasil, nunca foi se dar bem em eventos, mas no dia-a-dia”. Triste, porém verdadeira a afirmação de Paes. Eventualmente o Rio funciona muito bem; é bom de aparência! O problema essencial, no entanto, é que a “medalha de ouro” que a cidade deveria conquistar para si mesma através dos jogos, isto é, o famigerado “legado olímpico” social, cultural e ambiental, que prometia transformar o Rio na Barcelona dos trópicos, essa medalha, infelizmente, vai embora com o evento. Quando o acampamento do Comitê Olímpico Internacional (COI) debandar dessas praias, os cariocas e todos os que dividem o mapa com eles voltarão a usar a velha “medalhinha” de latão; “vira-latas” que somos e que, pelo jeito, continuaremos sendo. Porém, durante esse restinho -do que o presidente do COI jocosamente chamou de “Olimpíadas à la Brasil”-, a “Cidade Maravilhosa” pode se alienar do seu amanhã à la Atenas.

Desde que foi eleita para sediar a olimpíada em 2009, a cidade “deu baixa” para várias “cirurgias” preparatórias. Na área de mobilidade urbana: a construção da tímida -e até aqui inconclusa!- linha 4 da já tímida rede metroviária da cidade; a implantação de corredores expressos de ônibus, como os BRS e BRT, que, se por um lado reduziram o tempo das viagens, por outro lado apertaram a população em “latas de sardinha” superlotadas; a colocação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) na região central que, mais do que atender à população carioca daqui para frente, serve para os gringos passearem pelo Rio Antigo durante os jogos; e, símbolo espetacular do descaso com o povo, a construção da “Ciclovia Olímpica”, que era para ligar o rico bairro do Leblon ao ainda mais rico Bairro de São Conrado, mas que desabou poucos meses antes dos jogos, matando dois cidadãos, e estando interditada até hoje.

Na área de segurança pública o desafio maior foi tentar controlar o forte poder paralelo das milícias. Não erradicá-las definitivamente, todavia, uma vez que “o lado paralegal-miliciano da força” é muito lucrativo ao “lado legal-estatal”. A farsa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que em verdade foi um projeto de colonização das comunidades dominadas pelos traficantes de drogas mediante o poder do Estado, ficou clara desde o princípio. Está no YouTube para quem quiser ver: em vez de se valer de inteligência para prender os cabeças do tráfico, a Polícia anunciava com certa antecedência que iria “entrar” nas comunidades para que os criminosos tivessem tempo de, pelos próprios pés, fugirem, ou para “favelas” mais suburbanas que estavam fora do mapa das UPPs, ou para cidades do interior do estado. O importante mesmo era que os “sócios paralegais” permanecessem longe do Salão Nobre do Rio durante as olimpíadas (e também durante a Copa do Mundo dois anos antes). Em breve descobriremos como será, e quanto tempo demorará para os “maus filhos à casa tornarem”.

Já a cirurgia estética pela qual o Rio passou esta está de parabéns! Não exatamente pela sua pertinência social, muito menos pela racionalidade financeira, mas porque foi a única coisa que ficou pronta a tempo e ademais está cumprindo o seu papel de fazer um belo Rio “para inglês ver”. Nessa conta temos por exemplo a transformação da decadente zona portuária em “Porto Maravilha”; a demolição do imenso viaduto da Perimetral, brutalismo modernista imundo que escondia o que restou de beleza no Rio Antigo Central, para, no lugar dele, pavimentar o belo “Bulevar Olímpico; bem como a “peatonização” e a “bulevarização” da mais emblemática via da cidade, a Avenida Rio Branco; e, ícone cenográfico mor da recente plástica carioca, a construção do Museu do Amanhã no píer da histórica Praça Mauá, projeto do controverso e internacionalmente processado arquiteto catalão Santiago Calatrava, edifício que basta um olhar um pouco mais atento para perceber que não foi feito para durar, ainda mais em um país que não tem tradição nem tampouco dinheiro para fazer a manutenção de si mesmo. Mas enquanto o Museu do Amanhã e o Rio de hoje exibem a sua “cara novíssima”, cariocas e turistas ficam bem satisfeitos.

Se esteticamente o Rio arrasou, ambientalmente é um vexame! O megacompromisso ecológico era despoluir a Baia de Guanabara, a Lagoa Rodrigo de Freitas na Zona Sul, e as lagoas da Zona Oeste, não só porque seriam palco de várias competições náuticas, mas porque este seria o legado ambiental mais importante para a cidade. No entanto, o “legado” atualíssimo são as mesmas águas imundas. As da “Guanabara”, esgotadas por 18 mil litros por segundo de esgoto in natura; por toneladas de plástico, sofás, aparelhos de televisão; sem dizer de bactérias e vírus em quantidade 35 mil vezes mais alta que o patamar considerado alarmante nos Estados Unidos e na Europa. A incompetência hídrica é tamanha que nem a novíssima piscina para as provas de salto ornamental escapou de ter a sua água inacreditavelmente turva por excesso de bactérias e matéria orgânica. O prefeito da cidade, confrontado com a manchete que disse que “Olimpíadas não deixarão legado ambiental para Rio”, dissimulou: “Ok! É uma pena. Mas, veja, tá tudo bem!”

Desde sempre o maior destino turístico do Brasil, o Rio está acostumado a receber visitantes do mundo inteiro. No entanto, nunca soube falar a língua deles. Na verdade, não falar a língua dos gringos acaba sendo uma oportunidade para tirar vantagem, principalmente na hora de vender e cobrar. O “Jeitinho Brasileiro” se retroalimenta com a sua própria ignorância! Desafio desde 2009 era fazer com que os trabalhadores cariocas que fossem atender a maior diversidade turística que a cidade já viu falassem ao menos um inglês instrumental. A iniciativa privada não deixou por menos: quanto mais caras a diária do hotel ou a refeição do restaurante, em melhor inglês os estrangeiros são atendidos. Já nos serviços públicos o Rio segue a Babel de sempre: recebe o mundo com motoristas e trocadores de ônibus, taxistas e policiais incapazes de dar informações mínimas a quem não fala português -e até mesmo a quem fala-; os barraqueiros das praias, que alugam cadeira e guarda-sol e vendem água de coco, não sabem sequer dizer o preço dos seus serviços em inglês (e aí entram os gestos com os quais cobram mais do que o devido). Em suma, mesmo no seu clímax cosmopolita o Rio fala apenas o mais miserável “esperanto”: “Brazil”, “Pelé” e “Caipirinha”.

Para bem ilustrar o “destratamento” do Rio com os seus visitantes, um caso concreto dos dez primeiros “tropeços” que quem chega por aqui enfrenta. No segundo dia dos jogos eu retornava ao Rio pelo Aeroporto Internacional, o Galeão. Como não há metrô saído de lá (“como assim?” #1 -pergunta o turista); como o serviço de táxi local se oferece de forma violenta e pouco confiável (“como assim?” #2); e como o novíssimo BRT que leva a uma estação de metrô do subúrbio estava com seus guichês de compra de tickets fora do ar (“como assim?” #3); a solução foi embarcar no “Frescão”, ônibus executivo que faz o traslado até o centro, a Zona Sul e a Zona Oeste. No mesmo dia o site da empresa anunciava que o preço da viagem era R$16,00. Entretanto, o motorista cobrou de todos os 40 passageiros R$20,00 (“como assim?” #4). Se falando a mesma língua do motorista eu não consegui entender dele a razão da diferença de preço, imagine os gringos! Claro, essa questão se resolveria pragmaticamente caso houvesse um simples adesivo com o valor correto colado nalguma parte do ônibus. Mas como dito antes, a desinformação é estratégica.

Não obstante o “caixa-dois” que o motorista estava fazendo, aos estrangeiros que perguntavam -em inglês- se aquele ônibus os deixaria em determinados lugares ele respondia repetida e monocordicamente “Yes, Rio; Yes, Rio; Yes; Rio”, mesmo que os destinos solicitados estivessem completamente fora do trajeto (“como assim?” #5). Seis vezes eu tive de me intrometer e esclarecer aos gringos que, ao contrário do que o motorista estava dizendo, o ônibus não os levaria onde queriam, e qual deveriam tomar. E em vez de agradecer, o motorista ainda me ameaçava com os olhos (“como assim?” #6). Até mesmo quando passageiros brasileiros pediam para que o motorista os deixasse em determinados pontos da cidade -pois não sabiam onde ficavam- ouviam dele um inacreditável: “Yes, yes... Mas quando chegar lá me avisa que eu te aviso, ok?” (“como assim?” #7).

O desserviço do motorista era tal que ele se recusou inclusive a colocar as muitas bagagens dos passageiros no porta-malas do ônibus. Dizia “tá cheio” para quem quer que fosse. Mentira! Era só preguiça e péssimo atendimento mesmo, pois eu fui o primeiro passageiro a entrar no ônibus e não vi uma mala sequer ser guardada lá. Resultado: bagagens amontoadas por todo o corredor do veículo e sobre os passageiros (“como assim?” #8). No Rio olímpico, pagar mais do que o devido por um serviço vem com a sobretaxa de um serviço de pior qualidade. E depois disso tudo, quando estávamos já na parte da cidade onde as pessoas começaram a desembarcar, o motorista não parava nas maioria dos pontos antes dos quais as pessoas davam devido o sinal sonoro (“como assim?” #9). Enfurecido, porém em acessível português, perguntei ao motorista: “Vem cá, hein, por que você não faz o seu serviço direito?”. Fui ignorado, obviamente. E na hora em que eu ia descer, pimba! Ele passou dois pontos sem parar. Bradei, e como resposta escutei: “Se tivesse ficado tranquilinho tinha descido onde queria. Agora vai ter que caminhar mais” (“como assim?” #10).

Eis o Rio a que o Rio conseguiu chegar para o mais importante evento de sua história. Triste é perceber que depois de anos de preparação e de pesadíssimos investimentos públicos este é o melhor que a cidade teve para dar. Doravante, ultrapassado o horizonte olímpico, que foi a grande oportunidade para o Rio de Janeiro ter evoluído minimamente, o metrô seguirá raquítico; os ônibus, agora com novos apelidos, seguirão desconfortáveis; as milícias retornarão aos seus antigos domínios; as embelezadas áreas urbanas serão palco para a mais que esperada gentrificação; as águas da cidade, sejam elas do mar, da baia ou das lagoas, continuarão tão ou mais sujas quanto o poder que mentiu que iria despoluí-las; os cariocas não aprenderão a falar a língua dos turistas que os sustentam; e, por fim, alegoricamente, chegar ao Rio pelo Aeroporto Internacional continuará sendo um achaque seguido de roubo e desrespeito. O Rio de janeiro, da crista anã de sua onda olímpica, se prepara para mergulhar no seu velho mar de lama.

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