Mas não é possível sustentar seriamente que a acção de Mário Soares nesses tempos decisivos contribuiu para a obtenção das condições sociopolíticas de uma Liberdade que excedesse as tradicionais condições elementares.
Após os dias em que Mário Soares foi, inevitável e compreensivelmente, o assunto dominante em todos os canais da televisão portuguesa, estas colunas teriam naturalmente de se referir a esse tema. Não para abordar de um modo global e tendencialmente judicativo a figura do político falecido: essa tarefa, chamemos-lhe assim, é de natureza fundamentalmente política e não é da competência de duas colunas de comentário à televisão que nos é fornecida ao domicílio. Ainda assim, contudo, caberá talvez referir o que é generalizadamente sabido: que o momento em que morre um homem, seja ele qual for, não é o mais propício a que acerca dele se fale com a mais total franqueza. Dir-se-ia que a morte tem uma espécie de efeito tendencialmente absolutório, ainda que o grau e a natureza dessa absolvição variem com o perfil e a responsabilidade de quem morreu. Quanto ao que vimos e ouvimos na televisão desde o passado dia 7, tudo decorreu como podíamos esperar sabendo nós o que sabíamos. As reportagens e as entrevistas aconteceram como era previsível, ouviu-se as palavras de pesar do costume, mas a elas foi acrescentada uma implícita mensagem que não foi apenas um acto de homenagem ao homem desaparecido: a de que ele sempre esteve do lado certo das lutas políticas. O que ficou por provar, já se vê, designadamente quanto ao processo histórico posterior ao 25 de Abril. Em verdade, não terá sido surpreendente que nas filas que se alongaram em frente da sede do Partido Socialista ou do Mosteiro dos Jerónimos tenham estado, ainda que relativamente clandestinos, muitos herdeiros ideológicos do regime derrubado em Abril de 74.
Porque ela tem exigências
Ao longo destes dias de luto, evocação e homenagem, os telespectadores portugueses muito ouviram falar de Liberdade. Mas talvez alguns tenham lembrado as certeiras palavras de Sérgio Godinho numa das suas canções: «(...) Só há liberdade a sério quando houver / a paz, o pão, habitação,/ saúde, educação.//Só há liberdade a sério/quando pertencer ao povo o que o povo produzir.» Nem o mais generoso e optimista admirador de Mário Soares pode entender com lucidez que a acção por ele desenvolvida depois de Abril foi decisiva, sequer tendencialmente, para que fosse conquistado para os portugueses o quadro de condições apontadas por Godinho. Pode-se, naturalmente, reflectir sobre as condições e circunstâncias, nacionais e não só, dos tempos imediatamente posteriores ao derrube da ditadura fascista e sobre algumas eventualidades delas decorrentes, mas não é possível sustentar seriamente que a acção de Mário Soares nesses tempos decisivos contribuiu para a obtenção das condições sociopolíticas de uma Liberdade que excedesse as tradicionais condições elementares. Aliás, pergunte-se hoje mesmo ao desempregado dito de longa duração, ao pai de família despejado da casa que não conseguiu continuar a pagar, ao idoso sem dinheiro para frequentar a farmácia, ao jornalista que não consegue emprego porque são conhecidas as suas convicções comunistas, ao jovem compelido a emigrar, se consideram que as suas vidas decorrem em efectiva Liberdade. A questão é que não basta poder falar sem grandes precauções (sobretudo se o patrão não ouvir), encontrar o lugar onde apeteça residir (se a renda não for inacessível), saber escrever um bom texto (se algum jornal o aceitar), para que um homem esteja autenticamente em Liberdade. Porque ela, a Liberdade, tem exigências. E é incerto que Mário Soares, sem dúvida opositor ao fascismo, se tenha lucidamente empenhado para dar satisfação a todas elas.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2250, 12.01.2017