Em 25 de Abril de 1974 a fragata «Almirante Gago Coutinho» integrava uma força da NATO que saía de Lisboa rumo a Nápoles. Já passada a ponte, o Comandante da fragata recebe ordem do Estado-Maior da Armada para abandonar aquela força e passar a actuar sob as ordens directas do Almirante CEMA: iniciava-se assim um dia essencial nas vidas dos oficiais, sargentos e praças que constituíam a guarnição do navio. São estes os factos cruciais vividos a bordo nesse dia:
– Em rumo para o Terreiro do Paço, o Imediato informa o Comandante que há um compromisso de neutralidade activa da Marinha para com o Movimento Militar.
– O Comandante recebe ordem do Vice-CEMA para abrir fogo sobre os tanques rebeldes do Terreiro do Paço, pois a Marinha tinha de tomar uma posição contra o Movimento.
– O Comandante, alegando existirem cacilheiros a cruzarem o rio e muitos civis no Terreiro do Paço, não cumpre a ordem. No entanto, ordena ao Chefe do Serviço de Artilharia (CSA) para colocar as peças na máxima elevação (85.º), e municiá-las com munições de combate, ao mesmo tempo que inicia manobras do navio a velocidade elevada na zona fronteira ao Terreiro do Paço.
– O Posto de Comando do Movimento é informado do que se estava a passar, pelo que, através da Direcção do Movimento da Marinha, dá ordem para o navio colocar as peças na horizontal e sair a barra ou fundear.
– Cerca das 9h30, o Comandante recebe ordem para fazer fogo de salva para o ar. Dado não existirem a bordo nem peças nem munições de salva, o Comandante dá ordens para municiar as peças com munições de exercício, como consta do Diário Náutico.
– Cerca das 9h45, o Almirante CEMA dá directamente ordem de fogo de salva ao Comandante. Este ordena ao CSA para fazer fogo com munições de exercício para o ar.
– O CSA não cumpre essa ordem e o Imediato informa o Comandante da intenção dos oficiais se recusarem a fazer fogo, mesmo com munições de exercício.
– O Comandante exonera o Imediato. Os dois oficiais que convida para o substituírem recusam.
– O Imediato informa o Movimento que a situação a bordo estava controlada, e que os oficiais se tinham recusado a cumprir a ordem de fogo de exercício dada pelo Comandante.
– Esta informação é passada pelo Posto de Comando do Movimento às Forças do Terreiro do Paço.
– Cerca das 13h30, com o navio fundeado em frente do Terreiro do Paço, o Comandante convoca todos os oficiais para uma reunião na câmara. Após ter inquirido todos os oficiais, um a um, do mais moderno para o mais antigo, sobre se mantinham a sua posição de recusa em abrir fogo, e perante o «SIM» de todos, explicitado individualmente, o Comandante considerou-os insubordinados.
– No final da reunião, que terminou antes da rendição de Marcelo Caetano no Carmo, o Comandante realçou, explicitamente, a necessidade de cada um dos oficiais não se esquecer da posição assumida, pois ele também não se esqueceria.
43 anos depois, comemorar o 25 de Abril é, também, relembrar estes factos vividos. Mas é, tem de ser, sobretudo, reafirmarmos que a posição que assumimos se sustentou em Valores que reconhecíamos, e reconhecemos, como nossos, que nos foram, e são, imprescindíveis para nos construirmos como Militares, como Cidadãos, como Seres Humanos.
Comemorar o 25 de Abril é, assim, olhar para o Passado como o ponto de partida para uma viagem, individual e colectiva, que nos situa neste Presente que urge compreendermos, para podermos, com autonomia e independência, fazer as nossas escolhas, de novo individuais e colectivas, e rumarmos a um Futuro que possamos afirmar Nosso, mesmo se, e quando, a viagem se faça por rotas diferentes, mas nunca divergentes.
São aqueles Valores que nos permitem ligar Passado, Presente e Futuro de uma forma coerente, conquanto diversa nas suas expressões vividas. São Valores como os inscritos no Programa do Movimento das Forças Armadas: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização.
Da Democracia podemos dizer que temos vindo a aprender a praticá-la, com mais ou menos sobressaltos, erros, avanços e recuos. Mas é-nos cada vez mais seguro afirmar que rejeitamos o que Clement Attlee disse em 1957: «A democracia é o governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir impedir as pessoas de falarem». Não, não é esta a Democracia que queremos. É, sim, aquela que a nossa Constituição define como Democracia Participativa.
De facto, a Democracia não pode, não deve, esgotar-se no exercício de processos eleitorais. Nem ficarmos apenas em situação de «governação pelo Povo» – como se os governantes, porque eleitos, fossem substitutos do Povo; e de «governação para o Povo» – numa forma paternalista (no mínimo) de dizer que o Povo é incapaz de governar.
Falta-nos construir a Democracia Com o Povo, aquela que consubstancia a efectiva soberania do Povo, como impõe a Constituição.
Do Desenvolvimento podemos relevar o extraordinário avanço em relação ao «antes do 25 de Abril». Porém, é imperioso reflectirmos sobre muitas das escolhas feitas, e analisarmos com realismo e profundidade as consequências dessas escolhas, pois nos trouxeram a um Presente doloroso, angustiante e extremamente desigual quanto à vida real da esmagadora maioria dos portugueses.
Porquê? Porque de um Desenvolvimento inicial que centrava nas pessoas as suas acções e escolhas, apoiadas por instrumentos económicos, financeiros, jurídicos que condicionavam as decisões a tomar, passámos a um «desenvolvimento» determinado por aqueles instrumentos – pelos seus donos –, secundarizando, e mesmo marginalizando e excluindo, as pessoas.
Falta-nos reassumirmos, de facto, que são as pessoas, a Comunidade inteira, o cerne das acções e opções da governação e do Desenvolvimento.
Da Descolonização registamos a Independência das ex-colónias e a constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, como expressões da concretização deste «D» do Programa do MFA. Mas hoje confrontamo-nos com um outro tipo de descolonização – o Nosso!
Pois não é verdade que, nesta União Europeia, nos dizem que «A França é a França», numa fórmula tosca de confirmar que nela há «uns países mais iguais que outros»? E que a Alemanha não se coíbe de «exercer o comando» sempre que questionada, mesmo timidamente?
E não é verdade que são, mais uma vez, os instrumentos – a «união económica e monetária», o «euro», o «tratado orçamental» – a determinar as escolhas, menosprezando, mesmo desprezando – Grécia, Portugal – as pessoas? A «periferia» onde é colocado Portugal não será uma forma «delicodoce» de afirmar a situação de «colónia» do nosso país?
Falta-nos impor o cumprimento da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente quando explicita:
«Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua acção.
A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos níveis nacional, regional e local; ...»
Vivemos num mundo incerto, inseguro, instável, perigoso. Os Valores que sustentaram as nossas escolhas no 25 de Abril, e que sustentam hoje o modo como olhamos criticamente o Presente, ansiosos por construirmos um Futuro de efectivo bem-estar, seguro e solidário, estão inscritos em múltiplos documentos nacionais e internacionais – a nossa Constituição, a Constituição alemã, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, são alguns exemplos –, não podem ser meras palavras vãs para uso em discursos oficiais como «manto diáfano» para «tapar a nudez» dos interesses que nada têm de democráticos, nem de solidários, numa afirmação clara de que o que, de facto, o que está em causa é o exercício do «Direito do Mais Forte à Liberdade» (Rainer Fassbinder).
Voltemos à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:
«Capítulo I – DIGNIDADE – Artigo 1.º - Dignidade do ser humano
A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.»
Hoje é crucial acrescentarmos este «D» para continuarmos Abril: a Dignidade do Ser Humano é o Valor mais alto por que temos que continuar a lutar.
Uma luta exigente, difícil, duríssima.
É uma luta universal, pois a barbárie é praticada por todo o mundo, bem ao contrário do que nos diz a Carta Internacional dos Direitos Humanos:
«Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo».
Mas é uma luta que é imprescindível continuar a travar. Se a perdermos ou, sequer, se abdicarmos dela, perderemos o Futuro que ansiamos Livre, Inteiro, Solidário, Nosso.
Comemorar o 25 de Abril é assumir que exigimos ser protagonistas activos na construção desse Futuro.