Em fevereiro de 1917, a Rússia era uma monarquia atrasada e autocrática chafurdada em uma guerra impopular. Em outubro, depois não apenas de uma, mas de duas revoluções, ela havia se tornado o primeiro Estado de trabalhadores do mundo, empenhando-se para estar na vanguarda da revolução global. Como se deu essa transformação inimaginável? Num giro panorâmico que nos leva de São Petersburgo e Moscou às vilas mais remotas de um império que se alastrava, Miéville revela as catástrofes, intrigas e inspirações de 1917, em toda sua paixão, drama e estranheza. O autor intervém com maestria em debates historiográficos de longa data, mas sua narrativa tem em mente especialmente o leitor não especializado, que busca uma noção abrangente dos fatos daquele ano que mudou todo o século XX. Eis aqui um relato de tirar o fôlego sobre esse ponto de virada para a civilização, que ainda ressoa fortemente hoje. Leia abaixo o texto que Mauro Iasi escreveu para a orelha do livro.
Você conhece a Revolução Russa? Antes de responder, leia o incrível novo livro de China Miéville: Outubro: história da Revolução Russa. O autor britânico, expoente daquilo que foi batizado de new weird fiction, nos apresenta aqui um livro sobre uma das mais inacreditáveis histórias do século XX, cujos personagens e trama não deixam nada a desejar para nenhuma ficção bizarra – até parece, mas não é. Trata-se de história e, como tal, objetiva e partidária – como diz o autor: escolhendo seus heróis e vilões.
Um cenário fantástico de cidades brotando de pântanos, catedrais e minaretes, palácios e bairros operários, samovares e canhões, cimitarras e fuzis, podem dar a impressão de fantasia, mas trata-se de uma história fantástica que ocorreu de fato e estremeceu o mundo, abalando os alicerces da ordem e marcando definitivamente a humanidade na aurora de um novo século.
A reconstrução cuidadosa dos diálogos foi baseada em pesquisa competente não só da literatura oficial e do debate historiográfico, acadêmico e político, mas da rica objetividade contraditória da vida. Além do mito, além da caricatura, o leitor é levado em meio a personagens complexos, tridimensionais, que tateiam o solo duro da luta de classes a fim de encontrar seu caminho.
Aqui, as pegadas da antropologia social – disciplina em que o autor se formou em Cambridge, em 1994 –, as convicções do marxista revolucionário e militante, a alma do escritor e o ritmo do roteirista de quadrinhos se mesclam para produzir um resultado digno do evento que retrata.
Há cem anos, um sol proletário avermelhou os céus no Oriente. Não foi algo comportado. Foi violento e trágico. Emancipador e belo. Apaixonantemente vivo. Foram tempos em que operários controlavam as fábricas, mulheres mulçumanas faziam congressos, mansões de bailarinas viravam quartéis bolcheviques e palácios sediavam organizações anarquistas que penduravam faixas na sacada com os dizeres “Morte aos capitalistas” e transformavam os jardins em parques paras as crianças.
Foram-se cem anos e ainda falamos sobre esse terno terremoto. Ainda que o gelo tenha coberto as águas revoltas do rio, ainda que desfiles ordenados tenham ocupado o alegre caos dos revoltados e estátuas de ferro tenham substituído corações de carne e sangue que um dia pulsaram vivos.
Em cem anos muito já foi dito, mas nem tudo foi contado. Por mais cem anos ainda falaremos, para que o esquecimento e a mentira não matem a semente que na terra gelada resiste.