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Diário Liberdade
Sábado, 17 Dezembro 2016 13:20 Última modificação em Quinta, 22 Dezembro 2016 10:49

O fim da União Soviética, 25 anos depois: algumas reflexões (IV de VI) Destaque

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País: Rússia / Resenhas / Fonte: Cubadebate

José Luis Rodríguez* | Tradução do Diário Liberdade

VI

Ao morrer [Konstantin Chernenko], em março de 1985, foi promovido como secretário-geral do PCUS Mikhail Gorbatchov. Com 54 anos de idade, era o secretário-geral mais jovem eleito após a Segunda Guerra Mundial e também o primeiro que não havia participado dela.

Leia também: Parte I | Parte II | Parte III

Gorbatchov havia se graduado como jurista e desenvolvido sua carreira trabalhando em diferentes estruturas do Partido, onde ocupou cargos de direção na região russa de Stavropol desde 1962 e como secretário-geral entre 1970 e 1978. Ingressou no Comitê Central do PCUS em 1971 e em 1978 foi promovido a membro do Secretariado do Comitê Central a cargo da agricultura – anteriormente havia obtido o título de agrônomo em estudos por correspondência – sendo promovido a membro do Burô Político em 1980.

Já sob a direção de Andropov, Gorbatchov havia vindo se destacando como um quadro em ascensão. Tratava-se sem dúvidas de uma pessoa inteligente, com capacidade de direção e facilidade de comunicação, a qual contrastava com a personalidade de seus antecessores.

Não obstante, sua experiência prática na direção do Estado e sua formação em temas de política econômica e relações internacionais resultariam muito limitadas para o cargo que ocuparia em 1985.

O panorama que o novo dirigente enfrentaria era complexo. A URSS sofria um significativo desgaste sociopolítico como resultado do estancamento econômico, a deterioração de indicadores sociais básicos e também como consequência das sequelas – apenas parcialmente superadas – de um sistema político que havia falhado em dar uma resposta estável para superar adequadamente o capitalismo. Esse último aspecto era evidente pela burocratização dos processos de direção, a falta de renovação de dirigentes e a consequente carência de mobilidade social, assim como a falta de uma cultura socialista plenamente desenvolvida e a ausência de participação efetiva dos trabalhadores na gestão democrática da sociedade.

Precisamente no referido a esses últimos aspectos, chamava a atenção a passividade da sociedade soviética diante dos problemas da vida cotidiana, fenômeno que se manifestaria também nos últimos anos de existência da URSS. No que se refere à necessidade de uma nova forma de vida, o politicólogo russo Serguei Kara-Murza forneceria uma interpretação interessante sobre o tema, ao apontar:

“... a vida do povo soviético com seu bem-estar garantido (inclusive se este tivesse sido grande!) se converte em uma existência sem objetivos (…) Para um cidadão médio era enfadonho viver no socialismo soviético desenvolvido. E nosso projeto não propôs saída alguma para esse tédio (…) O socialismo que os bolcheviques construíram era efetivo como projeto para pessoas que haviam sofrido desgraças (…) Mas o projeto não respondia às exigências de uma sociedade próspera que já havia sofrido e esquecido a desgraça.”

Por outro lado, estava presente o crescimento de uma economia privada ilegal, também chamada de segunda economia que, – segundo estimativas já mencionadas anteriormente – alcançava um nível equivalente a 20% do PIB em 1988. A presença dessas ilegalidades se vinculava à extensão da corrupção no aparato estatal soviético durante o mandato de Brezhnev, fenômeno que foi inicialmente objeto de atenção prioritária por Yuri Andropov em seu breve período de mandato.

No âmbito da política econômica e do sistema de direção da economia, a ziguezagueante evolução das reformas dos últimos 20 anos não haviam trazido os resultados esperados. Não obstante, é preciso esclarecer que – apesar das dificuldades apontadas – a economia soviética não se encontrava então em meio a uma crise irreversível e mesmo que seja possível falar de um estancamento naqueles anos, há que se referir também à necessidade – não satisfeita – de consolidar um crescimento intensivo por meio do incremento da produtividade do trabalho. Apesar das dificuldades, deve se apontar que o nível de existência material do cidadão soviético médio havia aumentado notavelmente entre 1965 e 1985.

Tampouco deve ser deixado de lado o fato de que desde o final da década de 1970 a URSS enfrentava um reforço na ofensiva política e militar do Ocidente, encabeçada por Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Grã-Bretanha. Buscava-se – por diferentes vias – exacerbar as dificuldades econômicas do país por meio de uma política de sanções; romper o equilíbrio militar, especialmente no teatro de operações europeu, através da instalação de novas armas estratégicas – particularmente o Sistema de Defesa Antimísseis – no que se conheceria popularmente como “guerra das estrelas” e elevar as contradições internas nos países da Europa Oriental, assim como suas diferenças com a União Soviética. Um impacto evidente dessas pressões se manifestaria no gasto estimado entre 3 e 4 bilhões de dólares anuais para sustentar a presença de tropas soviéticas no Afeganistão – de onde só se retirariam em 1989 – e a transferência de 1 a 2 bilhões de dólares anualmente para apoiar o governo polonês frente à ofensiva antissocialista do Sindicato Solidariedade a partir de 1981.

Como é lógico, os temas econômicos despertaram a imediata atenção de Gorbatchov e sua equipe. De fato, as primeiras medidas adotadas em 1985 apresentaram uma reconsideração das metas de crescimento para o quinquênio 1986-1990.

Curiosamente, somente dois meses após ocupar o cargo o secretário-geral mostraria um critério que contrastava com os que predominavam desde as reformas econômicas anteriores: “Muitos de vocês veem a solução de seus problemas acorrendo a mecanismos de mercado no lugar da planificação direta. Alguns de vocês veem o mercado como o salva-vidas para os problemas econômicos, mas, camaradas, vocês não devem ver o salva-vidas mas sim o barco e o barco é o socialismo”. Mas esses critérios – assim como muitos outros – mudariam rapidamente na visão do máximo dirigente soviético.

Na evolução da política interna da URSS durante os últimos anos de sua existência, podem ser delimitadas claramente três etapas: 1985-1987, 1988-1989 e 1990-1991.

Durante os dois primeiros anos do mandato de Gorbatchov, se deu continuidade à maioria das linhas traçadas por seu antecessor, mediante uma política na qual pretendia-se aperfeiçoar a gestão econômica nos marcos do socialismo. Muitas das ideias acerca da necessidade de profundas mudanças já haviam sido formuladas por Gorbatchov no Pleno do CC do PCUS de dezembro de 1984 – onde já se falava da perestroika – e no Pleno correspondente a abril de 1985. A ênfase seria posta no desenvolvimento mediante a utilização do potencial científico técnico do país.

A apresentação de um programa econômico mais amplo se fez no XXVII Congresso do PCUS em fevereiro de 1986, que – em síntese – contemplava tornar mais eficiente a direção centralizada da economia, estender resolutamente a autonomia às empresas, passar a métodos econômicos de direção, utilizar para a administração as estruturas orgânicas modernas e democratizar todos os aspectos da administração.

Um aspecto que incidiria nos resultados da direção da sociedade soviética foi a decisão imediata de substituir dirigentes em todos os níveis, o que – embora pudesse ser justificado a partir de diferentes pontos de vista – na prática contribuiria para a instabilidade que se observou nos processos de direção durante esses anos. De tal modo, no prazo de um ano se substituiu 50% dos membros do Burô Político, cinco dos 14 secretários do partido a nível republicano, foi dado baixa a 50 dos 157 secretários do partido a nível regional e distrital e no total se substituíram cerca de 15.000 administradores.

Simultaneamente, foram promovidos ao Burô Político sucessivamente três dirigentes que exerceriam uma grande influência em Gorbatchov e no futuro da sociedade soviética nos anos seguintes.

Essas pessoas foram Alexandr Yakovlev, que havia ocupado cargos de importância na esfera da propaganda e da mídia no Comitê Central, e que também fora embaixador no Canadá durante 10 anos e que se tornaria secretário do Comitê Central e um dos assessores políticos mais importantes de Gorbatchov; Eduard Shevardnadze, que havia dirigido o partido na Geórgia e que passaria a ocupar o cargo de Ministro de Relações Exteriores; e Boris Yeltsin, dirigente do partido na cidade de Sverdlovsk, que foi designado para o importante cargo de secretário do PCUS na cidade de Moscou. Os três eram conhecidos – com diferentes matizes – por suas posições críticas e reformistas de corte social-democrata, que derivariam para expressões claramente anticomunistas e antissoviéticas no decorrer desses anos.

Durante esse período inicial, se sucederam rapidamente um conjunto de medidas de caráter socioeconômico.

Em primeiro lugar e para impulsionar o desenvolvimento, em junho de 1985 foram criados 23 novos complexos científicos e modificado o plano quinquenal em outubro para priorizar a produção de equipamentos tecnológicos avançados. Para se ter uma ideia da mudança que se implementava, deve ser levado em consideração que naquela época mais de 70% do potencial científico da URSS estava vinculado diretamente ao complexo industrial-militar, portanto uma transformação a curto prazo no emprego desse potencial era uma tarefa de enorme complexidade para intensificar a produção e ao mesmo tempo assegurar a defesa do país.

Em uma decisão de elevado impacto social, Gorbatchov lançou uma campanha contra o consumo de álcool em maio de 1985, um problema que – efetivamente – durante muitos anos havia incidido negativamente na saúde e na disciplina laboral soviética. Para isso, diminuiu a produção de vodka e limitou os horários de venda da bebida, medidas que – no entanto – não atacaram as complexas e profundas raízes do fenômeno na história do povo russo, não contaram com o necessário apoio social e a longo prazo resultaram ineficazes, já que se produziu um notável incremento da produção da aguardente caseira em alambiques clandestinos.

Igualmente, em maio de 1986, se implementou uma nova legislação para controlar os rendimentos não provenientes do trabalho, em um processo que tampouco aprofundou as causas da existência, desenvolveu a economia informal e não produziu resultados socialmente favoráveis. Por outro lado, em novembro desse ano se aprovou uma nova legislação sobre o trabalho individual que contribuiria para formalizar um conjunto de atividades que se desenvolviam a margem da lei. Curiosamente, nessa legislação não se autorizava o trabalho assalariado, princípio que se abandonaria posteriormente. Finalmente em novembro de 1987 aprova-se uma legislação que permite a entrega em arrendamento de bens estatais, preâmbulo da privatização de bens públicos que se abriria caminho pouco tempo depois.

Também como exemplo das mudanças institucionais que, com um enorme alcance, foram empreendidas a toda a velocidade na estrutura do governo, no final de 1985 se criou uma espécie de superministério para gerenciar a produção agroindustrial sob a denominação de Gosagroprom, que flexibilizou a produção agrícola com uma orientação mercantil, mas que tampouco produziu os impactos esperados e se dissolveu com a mesma rapidez com que foi criado, em abril de 1989.

No âmbito da transformação nas relações de propriedade, foi aprovada a criação das cooperativas não agropecuárias em outubro de 1986, que – segundo o critério de vários analistas – serviu mais para cobrir atividades ilegais do que para criar uma nova forma de gestão social. De igual modo, em janeiro de 1987 o país se abriu novamente ao investimento estrangeiro, fenômeno que não havia estado presente desde os anos da NEP e que teve um frio acolhimento no exterior, pois no final do ano só haviam sido investidos 89,3 milhões de dólares sob esse conceito.

Uma transformação de enorme transcendência no âmbito da propriedade estatal foi a aprovação de uma nova lei da empresa estatal em junho de 1987 sob os princípios da autonomia, a autogestão e o autofinanciamento que abria um espaço maior ao mercado reduzindo o papel da planificação e a direção central das empresas. Nessa legislação se percebia uma clara influência da reforma econômica que sobre o tema havia se desenvolvido desde o início dos anos 1980 na Hungria.

Finalmente, o Pleno do Comitê Central em junho de 1987 aprovou o que se denominou como Programa para a Reforma Econômica Radical, que – em síntese – assentaria as bases para ingressar no socialismo de mercado na URSS. Ao longo desse processo pode se apreciar como durante o período que vai de 1985 a 1987 se vai operando uma transformação da política econômica que rompe com as premissas das reformas econômicas anteriores e começam a aparecer sinais claros de mudanças que se distanciam das premissas essenciais adotadas para aperfeiçoar o socialismo.

Nesse ponto deve ser destacado que houve dois conceitos cujo conteúdo presidiria as transformações a serem empreendidas, mas que iriam se transformando com o tempo. O primeiro era a perestroika, que pode ser traduzido como reconstrução ou reestruturação e o segundo foi a glasnost, ou transparência. Em ambos os casos, inicialmente o alcance das mudanças a serem introduzidas se enquadravam nos marcos do socialismo, unindo-se às exigências pela democratização dos processos de direção social com esse mesmo referente.

No entanto, já a partir dos acordos do Pleno do Comitê Central do PCUS de janeiro de 1987 se introduz um conceito de democratização com referentes liberais próprios da sociedade burguesa e se vão desfazendo os aspectos socialistas de atuação da perestroika e da glasnost como instrumentos para aperfeiçoar o socialismo, transformando-se gradualmente em elementos para seu questionamento.

Simultaneamente – no âmbito dos meios de comunicação – a exigência de maior transparência na governabilidade social se focaliza em uma revisão histórica do desenvolvimento da URSS e – particularmente – a uma avaliação crítica do fenômeno do stalinismo. Nesse processo abriu-se caminho a inimigos declarados do socialismo e nunca foi realizada uma análise ponderada da complexa história do país, o que fez com que tudo isso conduzisse a uma campanha que terminaria questionando as indiscutíveis conquistas do socialismo na sociedade soviética e a criar uma enorme confusão na sociedade.

Ao terminarem esses dois primeiros anos, os resultados econômicos mostraram uma tendência ao retrocesso com o crescimento da renda nacional que baixou de 2,3% em 1986 para 1,6% em 1987; a produção industrial decresceu de 4,4% para 3,8% e a produção agropecuária de 5,3% se contraiu 0,6%.

A partir desse momento o debate oscilaria em torno da aplicação das reformas, por um lado, e da adoção de medidas imediatas de estabilização econômica, por outro.

* Assessor do Centro de Investigações da Economia Mundial (CIEM). Foi ministro da Economia de Cuba. Artigo publicado em 10 de junho de 2016.

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