Em contrapartida, quando se trata não do que corrompe a sociedade, mas do que a mantém em pé, isto é, o poder, o povo inteiro não se roga em responsabilizar-se por ele. Tanto que a Constituição brasileira é aberta com o seguinte artigo: “Todo poder emana do povo”. Aí é fácil participar imanentemente da estrutura da sociedade! Agora, se a Carta Magna explicitasse outra verdade, qual seja, que “toda corrupção estrutural também emana do povo”, ou seguiríamos ignorando-a, ou a riscaríamos de vez da Constituição.
Cabe aqui atentar ao que disse o filósofo francês Michel Foucault em Microfísica do Poder, qual seja, que o poder circula, que se exerce em rede, sendo que cada um de nós de certa forma e em certa medida é titular desse poder. Daí podemos concluir que o poder dos políticos corruptos, tanto os que seletivamente sacamos da estrutura corrompida para representante no lugar de todos a corrupção estrutural, quanto os que são “deixados em paz”, mesmo sendo tão ou mais corruptos que aqueles, esse poder é dado a eles por nós, o povo, isto é, a origem da qual todo poder emana. Mesmo que não queiramos assumir que a corrupção dos nossos representantes políticos jaz a priori no próprio povo, ao menos deveríamos aceitar o fato de que o poder com que eles corrompem a sociedade é dado a eles pelo povo mesmo, e no caso brasileiro, democraticamente.
Para entender melhor isso, vale lembrar outro francês, o humanista Étienne de La Boétie. Este filósofo dizia que o poder do tirano, seus mil braços e mil olhos, não são seus, visto que é um homem como qualquer outro, com seus dois braços e dois olhos apenas; mas que estes mil braços e mil olhos são deles somente na medida em que seus mil súditos cedem seus braços e olhos a ele. Moral da história: não precisamos ir até o castelo do tirano para matá-lo e para nos livrarmos dos seus mil braços e mil olhos tirânicos; basta que simplesmente não mais demos os nossos para ele. Afinal, segundo Foucault, não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”.
Da mesma forma, as mil e uma corrupções que espoliam e envergonham os brasileiros não são exclusividade dos seus representantes políticos corruptos. Eles apenas podem praticá-las descaradamente porque seus mil e um representados, nas suas mil e uma corrupções cotidianas -não solicitar ou não fornecer nota fiscal nas compras e vendas; baixar indevidamente músicas e filmes na internet; beber, dirigir e escapar da Lei Seca; estacionar automóvel em vaga para deficientes etc.- já criam os subterrâneos e a priori alicerces corrompidos sem os quais a evidente e a posteriori estrutura da corrupção não teria como sustentar-se. Aplicando aqui a fórmula boétiana, contra a corrupção estrutural bastaria que o povo não mais desse fundamento à corrupção, isto é, que não mais fosse corrupto na parte da estrutura que lhe cabe?
Alguns podem dizer que, mesmo que o povo seja probo, sempre haverá representantes impertinentes corruptos. Abstratamente isso pode até convencer. Porém, se a abstração a posteriori que é a sociedade só existe por conta dos seus indivíduos concretos e a priori, uma sociedade lisa somete existirá se os indivíduos que a compõem forem lisos em primeiro lugar. Do contrário, se os cidadãos já forem corrompidos, a sociedade só será íntegra mediante a argamassa da alienação, o reboco da mentira, o papel-de-parede da manipulação midiática. O “Brasil para todos” de Michel Temer é o exemplo concreto e atual dessa ruína social corrompidíssima disfarçada de nova “Ponte para o Futuro”: presidente, ministros, senadores, deputados, vereadores, e até mesmo o povo, todos profundamente estruturados na corrupção, no entanto, superficialmente tentando fazerem crer o contrário.
É preciso comprometer o Brasil consigo mesmo em função do fim da corrupção estrutural. Não só os políticos que escolhemos para representantes da corrupção que atravessa de cima a baixo e do passado ao presente a torre brasilis, mas também todos os demais. Tampouco devemos deixar-nos, o próprio povo, de fora desse comprometimento. Em primeiro lugar, mantendo o pedacinho do Brasil que ocupamos livre da erva-daninha da corrupção, pois só assim não nascerá nenhum jatobá corrompido insuportável. Em segundo, recusando-nos a separar o joio do trigo somente de quatro em quatro anos, nas urnas, mas participando direta, cotidiana e intempestivamente no governo do país. E em terceiro e mais importante lugar, nunca gritando: “salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar”; afinal, se algum corrupto é punido no lugar de outro, a corrupção segue tendo lugar cativo dentro sociedade.