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Diário Liberdade
Domingo, 11 Dezembro 2016 08:24 Última modificação em Terça, 20 Dezembro 2016 11:17

O fim da União Soviética, 25 anos depois: algumas reflexões (II de VI) Destaque

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País: Rússia / Batalha de ideias / Fonte: Cubadebate

José Luis Rodríguez* | Tradução do Diário Liberdade

III

Para compreender as causas que levaram ao desaparecimento da União Soviética em 1991 é imprescindível remontar à história e, nesse sentido, a etapa inicial do chamado pós-stalinismo é de singular importância.

Leia também: Parte I | Parte III | Parte IV

Com a morte de J. Stalin, em março de 1953, culminou uma etapa muito complexa da história soviética onde as circunstâncias extraordinárias que estiveram presentes na guerra civil, na implementação da NEP, ou durante a coletivização forçada e a primeira etapa da industrialização dos anos 30 se converteram – aparentemente – em fases normais da construção socialista marcadas pela ausência de uma democracia socialista real e violações à legalidade que se manteriam por muitos anos, fenômenos que se replicariam também nas democracias populares europeias que emergiram depois da Segunda Guerra Mundial.

Acerca da controversa personalidade de Stalin, nosso Comandante em Chefe expressaria:

“Sobre ele recai a responsabilidade, ao meu ver, de que esse país tivesse sido invadido em 1941 pela poderosa maquinaria bélica de Hitler, sem que as forças soviéticas tivessem recebido a ordem de alarme de combate. Stalin cometeu, também, graves erros. É conhecido seu abuso do poder e outras arbitrariedades. Mas também teve méritos. A industrialização da URSS e a passagem e desenvolvimento da indústria militar na Sibéria foram fatores decisivos naquela luta do mundo contra o nazismo.

Eu, quando o analiso, avalio seus méritos e também seus grandes erros, e um deles foi quando expurgou o Exército Vermelho em virtude de uma intriga dos nazistas, o que enfraqueceu militarmente a URSS, nas vésperas da investida fascista.” [1]

Nesse sentido, se pode afirmar que a assinalada ausência de uma autêntica democracia interna nos processos de gestão social, o culto à personalidade, os abusos de poder e a repressão injustificada que estiveram presentes durante boa parte do mandato de Stalin à frente do governo soviético foram, sem dúvida, fatores que incidiram negativamente na causa do socialismo dentro e fora da URSS e constituíram elementos que deixaram uma marca muito negativa na memória histórica desse povo, alimentando tendências negativas no comportamento dos soviéticos que contribuíram também para a queda da URSS ocorrida anos depois.

Após diversos ajustes e demissões na equipe de direção que substituiu Stalin em 1953, ela ficou basicamente integrada por Georgi Malenkov, que ocuparia o cargo de presidente do Conselho de Ministros entre março de 1953 e fevereiro de 1955 e Nikita Krushchov, que ocuparia o cargo de primeiro secratário do PCUS de setembro de 1953 a outubro de 1964 e de presidente do Conselho de Ministros de março de 1958 a outubro de 1964. Em geral, houve um processo de mudanças – não isento de luta entre distintas facções – entre 1953 e 1958 até que se renovou completamente o grupo de colaboradores mais próximos a Stalin, os quais foram enviados a cumprir outras tarefas, mas nenhum foi julgado ou reprimido [2], vivendo uma existência normal até o final de suas vidas.

Os novos governantes soviéticos se enfrentaram então com uma série de obstáculos no desenvolvimento econômico e social que punham de manifesto a necessidade de profundas transformações na política econômica que se vinha aplicando, levando em conta que o país não podia continuar crescendo extensivamente considerando os limites demográficos impostos pela guerra, pelo que era necessário incrementar a produtividade do trabalho, inclusive para brindar maior atenção ao consumo e tudo isso em meio a um confronto crescente com o Ocidente no âmbito político e militar.

No terreno econômico, um dos problemas mais importantes dessa etapa se encontrava na agricultura, que arrastava dificuldades não resolvidas desde os anos da coletivização forçada, ao que se acrescentavam os efeitos do conflito bélico. De tal modo, em 1952 se alcançava uma colheita de cereais de 92,2 milhões de toneladas, o que representava entretanto 3,6% abaixo de 1940. Sobre isso observaria o historiador Alec Nove:

A situação da agricultura nos últimos anos de Stalin esteve, pois, exacerbada pelas intervenções equivocadas da autoridade, pela excessiva centralização das decisões, pelos preços extremamente baixos, pelo insuficiente investimento e pela falta de incentivos adequados.” [3]

Krushchov tentaria solucionar esses problemas com diversas medidas – incluindo um tratamento mais estimulante ao setor privado e cooperativo – mas sobretudo estendendo as áreas agrícolas exportáveis na chamada “Campanha das Terras Virgens” que levou a cultivar 46 milhões de hectares adicionais por mais de 300 mil jovens que se mobilizaram entre 1954 e 1960 em territórios da Sibéria e do Cazaquistão e que – embora não tenha sido a solução permanente para todos os problemas – produziu um aumento notável da produção agrícola do país.

Igualmente começou a ser redesenhada a política de industrialização, dirigindo-a com uma maior prioridade para a produção de artigos de consumo frente ao até então crescimento prioritário da indústria básica.

Nesse contexto e apesar dos ajustes na política monetária que houve que realizar a partir das distorções provocadas pela guerra – incluindo a reforma monetária de 1947, que introduziu um câmbio de moeda com desvalorização – estima-se que os salários reais dos trabalhadores mostraram um notável crescimento entre 1947 e 1952, melhorando seu nível de vida. Essa tendência à melhoria nos níveis de vida da população continuaria durante os anos 60, ainda quando nem todas as medidas que se introduziram produziram os resultados esperados.

Precisamente no esforço para melhorar as condições de vida do povo, Krushchov fomentaria a ideia da coexistência pacífica e – nesse contexto – proporia superar em diferentes aspectos um grupo de indicadores da economia norte-americana, objetivo que não contava com as condições indispensáveis para ser alcançado em tão curto prazo. Não obstante, a taxa de crescimento da produção industrial foi notavelmente elevada na economia soviética nesses anos. Desse modo, entre 1951 e 1955 a indústria cresceu 13,1% na média anual contra 6,2% nos EUA; enquanto que entre 1956 e 1960 o crescimento foi 10,4% em comparação com 2,4% nos EUA. No entanto, o Produto Nacional Bruto da URSS em 1955 representava apenas 40% do dos EUA, proporção que chegaria a 50% dez anos mais tarde, o que denotava a magnitude do enorme esforço produtivo a se desenvolver para igualar ou superar a América do Norte.

Por outro lado, não é possível ignorar que a Guerra Fria aumentaria as tensões entre a URSS e seus antigos aliados da Segunda Guerra Mundial.

De fato, o Plano Marshall, implementado pelos Estados Unidos, terminou sendo um programa de ajuda à Europa ocidental para enfrentar o comunismo. A contrapartida soviética apareceu em janeiro de 1949 quando se cria o CAME, ao tempo que surge a OTAN em abril de 1949 e o Pacto de Varsóvia em 1955 como estruturas militares de confrontação.

Consequentemente, a URSS – que havia se convertido em potência nuclear – elevaria notavelmente seus gastos militares já nesses anos, duplicando o mesmo entre 1948 e 1952. Conforme estimados, esses gastos representavam 17% do PIB em 1950 e em 1960 chegavam a 11,1%, proporções muito superiores às dessas despesas na economia norte-americana, o que supunha um obstáculo maior para o crescimento da economia nacional.

Não obstante, o rápido desenvolvimento defensivo do país permitiu avançar na equiparação do potencial militar com o Ocidente. Desse modo, especificamente na esfera de foguetes, se pôs de manifesto o alcançado quando em 1957 se lançou o primeiro satélite artificial da Terra e quatro anos mais tarde se enviou o primeiro homem ao espaço, conquistas indiscutíveis do complexo científico-militar soviético naqueles anos.

Outra das transformações de maior importância desse período se dirigiria a modificar a situação política interna vigente até 1953.

Nesse sentido, já desde 1955 se produziu uma diminuição das pessoas detidas pelos delitos considerados como políticos e muitas foram reabilitadas ao se comprovar que haviam sido condenadas injustamente.

Um momento chave nessas transformações foi constituído pelo XX Congresso do PCUS celebrado em fevereiro de 1956 e no qual Nikita Krushchov apresentou um relatório a portas fechadas denunciando as violações à legalidade incorridas pelo governo de Stalin desde os anos 30. Esse processo continuaria com as análises do XXII Congresso do PCUS celebrado em 1961, onde se produziu um enfrentamento com o Partido Comunista da China por discrepâncias sobre a forma em que se criticou o stalinismo, o que conduziu a um enfrentamento entre os dois maiores partidos comunistas do mundo que duraria até 1989. Essa discrepância provocou uma divisão dos partidos comunistas de muitos países, fenômeno de consequências muito negativas para o movimento revolucionário da época.

O processo de superação dos erros políticos cometidos apresentou desafios importantes e se pode afirmar que Krushchov assumiu uma grande responsabilidade, ao realizar a análise crítica de uma etapa fundamental na história do país. A partir dessa análise, embora as medidas adotadas fossem positivas, as mesmas resultaram incompletas, já que não se aprofundou nas causas últimas desses fenômenos, não houve um enfrentamento consequente da gestão burocrática predominante na sociedade soviética e tampouco se criaram os mecanismos para assegurar uma participação efetiva da população no governo dessa sociedade.

Ainda, e apesar das limitações de análise, foram eliminadas práticas repressivas e aberto um espaço maior à discussão desses problemas no seio da sociedade soviética, que – até certo ponto – conseguiu se reencontrar com sua própria história.

Assim, durante esses anos se produziram manifestações artísticas de alto valor que refletiram criticamente esses complexos processos, tais como os filmes Chistoye nebo ou Quando voam as cegonhas e também se publicaram livros de testemunho como Um dia com Ivan Denisovich, do escritor Alexander Solzhenitsyn [4], processos que contrastaram com a visão restritiva da arte que predominou na etapa anterior.

Um fator determinante no trabalho dos dirigentes soviéticos naqueles anos foi o esforço para redesenhar a política e o sistema de direção da economia, com vistas a garantir uma gestão econômica mais eficiente. Nesse sentido, as decisões adotadas por Krushchov em 1957 trataram se avançar a uma planificação descentralizada, para a qual se aboliu a estrutura de direção centralizada de mais de 30 ministérios, os que se constituíram por cerca de 100 conselhos econômicos locais, conhecidos como sovnarkhos, que se reagruparam em 17 regiões em 1961. Essa mudança – sem que previamente se criassem condições para uma transformação de semelhante complexidade – não resolveu tampouco os problemas da direção econômica do país.

Por outro lado, de 1958 até 1965 foram realizados debates sistemáticos dirigidos a superar os problemas do modelo centralizado de gestão, transitando para uma descentralização das decisões.

Realmente a história demonstrou que as decisões centralizadas desempenhavam um papel fundamental quando na economia deviam se enfrentar um conjunto limitado de medidas com vistas a alcançar mudanças estruturais básicos. Em efeito, na evolução econômica da URSS essas decisões permitiram assegurar essas transformações alcançando – por sua vez – altas taxas de crescimento.

No entanto, na medida em que os objetivos de desenvolvimento social começaram a se diversificar, as decisões absolutamente centralizadas deixaram de ser efetivas – embora a eliminação dos seus defeitos mais evidentes tenha permitido avançar rapidamente a curto prazo, tal como ocorreu com as transformações que se implementaram na URSS entre 1953 e 1956 em relação à agricultura e à produção de artigos de consumo.

Chegado um ponto entre o final dos anos 50 e a primeira metade dos anos 60, se pôs de manifesto uma clara desaceleração nos ritmos de crescimento acompanhada do menor aumento da produtividade do trabalho, o que evidenciou a necessidade urgente de uma reforma econômica integral.

O debate se centrou então em quais decisões deviam continuar centralizadas – fundamentalmente as que se referem ao balanço entre os grandes agregados macroeconômicos – e quais deviam ser deixadas para serem adotadas a nível empresarial, utilizando para isso os instrumentos do mercado. Em 1962 esse debate alcançou um ponto de maior intensidade a partir das ideias do economista soviético Evsei Liberman [5] que – essencialmente – propôs concentrar os indicadores das empresas nos ganhos e controlar indiretamente sua gestão mediante mecanismos de mercado.

Como se comentou na primeira parte deste trabalho, emergiu a discussão de como combinar plano e mercado em uma economia socialista, mas sem que estivesse totalmente esclarecido conceitualmente o tema das relações monetário-mercantis no socialismo. Nesse sentido, as opiniões se dividiram: um grupo de países decidiu utilizar os mecanismos de mercado mantendo uma planificação forte (foi o caso da URSS, RDA, Romênia e em menor grau a Polônia), enquanto outros colocaram o mercado como regulador principal da economia (foi o caso de Hungria, Tchecoslováquia e Bulgária) dando lugar aos conceitos que formariam as teses do chamado socialismo de mercado.

Por outro lado, surgiram ideias muito interessantes, algumas das quais não foram levadas em consideração adequadamente. Esse foi o caso dos modelos econômico-matemáticos que se elaboraram em meio a esse debate por destacados acadêmicos como Leonid Kantorovich – um dos criadores da programação linear –, V. Nemchinov e Victor Novozhilov. Tal foi o caso do modelo de gastos de relação inversa elaborado pelo acadêmico soviético Novozhilov que permitia manter um marco de decisões centralizadas e – ao mesmo tempo – possibilitava às empresas achar a variante mais adequada do plano central mediante a chamada centralização indireta [6].

As discussões foram muito intensas e evidentemente – se bem a aplicação das reformas tenha levado a melhores ritmos de crescimento entre 1966 e 1970 na URSS e a maioria dos países socialistas europeus – essa tendência não se sustentou ao longo do tempo.

Em outubro de 1964, Nikita Krushchov foi substituído em seu cargo a partir de erros em que tiveram muito peso a não solução efetiva dos problemas da agricultura e a queda nos ritmos de crescimento da economia soviética naqueles anos.

Notas:

[1] Ver Cien horas con Fidel. Conversaciones con Ignacio Ramonet (Segunda Edição. Revisada e enriquecida com novos dados). Oficina de Publicaciones del Consejo de Estado, Havana, 2006, página 206.

[2] A única exceção foi o caso de Lavrenti Beria, que por sua responsabilidade direta na repressão à frente dos órgãos de segurança do país desde 1938, foi julgado e executado em dezembro de 1953.

[3] Ver Alec Nove, Historia económica de la Unión Soviética. Alianza Editorial, Madri, 1973, p. 324.

[4] Esse livro foi publicado em Cuba em 1963.

[5] Suas teses foram conhecidas em Cuba ao se publicar seu livro Métodos económicos para la elevación de la efectividad de la produción social. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975.

[6] Em Cuba se publicou sua obra fundamental, La medición de los gastos y sus resultados en una economía socialista. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975.

* Assessor do Centro de Investigações da Economia Mundial (CIEM). Foi ministro da Economia de Cuba. Artigo publicado em 16 de maio de 2016.

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