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Diário Liberdade
Sexta, 23 Dezembro 2016 10:59 Última modificação em Quarta, 28 Dezembro 2016 15:26

O fim da União Soviética, 25 anos depois: algumas reflexões (VI e última)

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País: Rússia / Resenhas / Fonte: Cubadebate

Por José Luis Rodríguez *| Tradução do Diário Liberdade

I

Como foi apontado nos artigos anteriores, o desaparecimento do socialismo na URSS foi motivado por múltiplas causas, que se engendraram durante um longo período de tempo e no qual o papel das diferentes personalidades políticas em seu devir histórico contribuiu de diversas formas para o desdobramento final.

Leia também: Parte I | Parte II | Parte III | Parte IV | Parte V

Um primeiro fator essencial na derrubada foi a ausência de uma verdadeira cultura socialista, o que não assegurou a motivação ideológica capaz de conseguir com que o homem identificasse seu projeto de vida pessoal com os interesses mais altos da sociedade, o que, por sua vez, supunha a participação democrática e consciente daquele na tomada de decisões apropriadamente consentidas entre todos os seus membros [1].

Um elemento chave para entender a complexidade da situação já era destacado por Lenin em seus últimos escritos quando apontava que o desafio essencial era alcançar mais eficiência na empresa comunista em relação à capitalista, sobre o que destacava: “(...) ou passamos essa provação com o capital privado ou fracassamos por completo. Para nos ajudar a sair bem nesse prova temos o poder político e uma série de diversos recursos econômicos e de outro tipo; temos tudo o que queiram, menos capacitação (…) o que nos falta é cultura no setor dos comunistas que desempenham funções de direção.” [2].

Essa cultura – que pode também ser entendida como o conhecimento indispensável para construir o socialismo – nunca se conseguiu criar plenamente. Em seu lugar, frente às inevitáveis contradições desse processo, surgiu a imposição autoritária e a repressão do dissenso por parte de uma elite dirigente divorciada das massas e burocratizada até a medula que esqueceu os ensinamentos de Lenin, cegou as potencialidades do socialismo como sistema e contribuiu para o colapso desse modelo.

Após a morte de Lenin, “Stalin foi o rosto visível e a figura representante da nova camada dirigente que foi rompendo gradualmente vínculos com a direção genuinamente revolucionária (com maior ênfase depois da morte de Lenin), e foram se desfazendo dos mecanismos fraquíssimos de controle político das massas” [3].

“Aos principais cargos administrativos foram chegando figuras de nível secundário dentro da revolução, fato motivado, entre outros fatores, porque muitos antigos combatentes pereceram durante a guerra civil, ou foram se separando das massas com promoções ou cargos de menor relevância ou porque simplesmente o cansaço dos duros anos de combate e as circunstâncias hostis em que se vivia esmurecia a resistência de alguns homens. Essa foi uma das fontes de onde a casta em gestação se nutriu.” [4]

A isso se somaria a tradição burocrática do estado czarista, do qual muitos ex-integrantes foram utilizados como pessoal técnico especializado, mas que também portaram o germe do processo de burocratização do estado socialista desde o início da Revolução.

Nesse contexto, a imposição de decisões a partir dos níveis superiores de direção, sem gestar o apoio político indispensável para sua aplicação, conduziu a fenômenos como a coletivização forçada da terra no início dos anos 30 e a um processo de industrialização por marchas forçadas, que deixou suas marcas em mais de uma geração de soviéticos.

Adicionalmente e ao contrário do que ocorreu sob a direção de Lenin – que sempre, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, estimulou o debate interno sobre diversos aspectos da construção socialista –, nos anos 30 Stalin enfrentou a oposição a suas ideias e para isso desencadeou um processo de expurgos internos dentro do próprio aparato do partido e do estado soviético que levou à liquidação física de sua direção histórica, processo que culminaria com o assassinato de Trotsky no México em 1940.

Ainda hoje dá trabalho avaliar o enorme impacto negativo que esses processos tiveram para a direção da União Soviética [5], a construção do socialismo e as ideias do marxismo em geral.

Essas tendências negativas só foram criticamente analisadas de forma parcial pela direção do PCUS durante um curto período de tempo – de 1956 a 1961 – e os efeitos dos erros cometidos não foram superados pelos sucessivos governos soviéticos que existiram até o desaparecimento da URSS em 1991.

Entretanto, embora os aspectos políticos tenham tido um peso decisivo na evolução do socialismo soviético, também os erros no âmbito da economia teriam uma significativa participação nisso. Nesse caso, trata-se especialmente da incorreta interpretação das relações monetário-mercantis e o papel do mercado no socialismo, ao assimilá-los como uma simples técnica para a atribuição ótima de recursos na microeconomia, o que – ao ser generalizado – deu origem ao chamado socialismo de mercado, que gerou um impulso a tendências economicistas e tecnocráticas, deixando de lado a necessidade indispensável de compensar os efeitos sociais negativos da economia mercantil.

Outros muitos erros foram derivados dessas causas essenciais. Entre eles cabe destacar a subestimação do consumo; o atraso secular da produção agropecuária; a compartimentação da ciência limitada ao âmbito do complexo militar-industrial, não aplicando seus resultados à produção e aos serviços da esfera civil; e a expansão excessivamente onerosa do gasto militar.

Os métodos de direção aplicados e seus efeitos nocivos propiciaram também o aparecimento da corrupção, o enriquecimento ilícito e a expansão do mercado negro na economia soviética, especialmente nos últimos 20 anos de sua existência. A isso se somaria uma consciência social penetrada por práticas consumistas e a ausência cada vez maior de um compromisso real com a sociedade socialista entre uma parte crescente da população.

No entanto, apesar de todos os erros e contradições, a sociedade soviética mostraria avanços inquestionáveis que elevaram o nível de vida e o fortalecimento do estado soviético baseado no enorme esforço de seu povo.

O risco da simplificação na análise de processos históricos tão complexos sempre esteve presente. Por isso é indispensável nesse ponto assinalar que na interpretação da história do chamado socialismo real, a maioria das análises contrapõem o ocorrido com o que teoricamente deveria ter sucedido, ao que se acrescenta a tendência de muitos autores a não levar em consideração as condições em que esses processos transcorreram realmente e seu impacto no desenvolvimento dos povos, ao compará-los com a alternativa que o capitalismo teria oferecido para seu desenvolvimento.

Certamente não se trata de justificar a posteriori os resultados da experiência socialista soviética a todo o custo, mas muitas vezes se expressam critérios que só refletem os ângulos mais obscuros do socialismo e se descarta até o mais modesto reconhecimento ao que essa experiência pode ter deixado de positivo.

Nesse sentido, além de considerar todas as agressões que o povo soviético e seus dirigentes tiveram que enfrentar, não é possível esquecer que as novas relações sociais a serem criadas deviam ser conscientemente assumidas pelos trabalhadores, em um processo de acelerada aquisição de conhecimentos e assimilação crítica da realidade, que supunha simultaneamente a superação dos hábitos da sociedade mercantil e a implantação da solidariedade social.

Esse processo – inédito na história – supunha um desenvolvimento político e ideológico de adaptação às novas condições sociais que não poderia transcorrer sem atravessar complexas circunstâncias e profundas contradições, especialmente se for levada em conta a tradição que durante séculos levou o ser humano a se enfrentar com seus semelhantes para conseguir sobreviver.

Na medida em que os fatores subjetivos não se desenvolveram suficientemente para permitir uma compreensão dessa complexa transição, foi até certo ponto lógica primeiro a aceitação e depois a assimilação acrítica de todo o arsenal de ideias do sistema capitalista, cujas armas deterioradas – como havia advertido o Che – não podiam servir para a construção da nova sociedade.

A visão política e a coragem necessária para transitar para o socialismo em meio às enormes dificuldades que esse processo apresentava se expressou claramente nas valorizações de Lenin e os companheiros bolcheviques que seguiram seus passos. Mas sua genialidade e sacrifício não os eximiu de cometer erros, aos quais se somaria depois a fraqueza humana dos dirigentes que em nome do socialismo não puderam ou não quiseram desenvolver suas potencialidades como sociedade superior na luta entre os dois sistemas.

Faltaria apenas a gestão de uma pessoa como Mikhail Gorbatchov que, supostamente combatendo as deformações do socialismo soviético, terminou alimentando as tendências anticomunistas e pró-capitalistas presentes na direção do país, contribuindo assim, decisivamente, para a aceleração do processo de destruição da URSS.

II

Ao se produzir o desaparecimento oficial da URSS em dezembro de 1991, uma parte dos antigos dirigentes do PCUS – nos quais se sintetizaram muitas das carências e erros do socialismo soviético – passou a encabeçar a transição ao capitalismo à frente dos novos estados que haviam surgido.

Foram os casos de Boris Yeltsin na Rússia, que governou o país entre 1991 e 1999; Islam Karimov, que preside o Uzbequistão desde 1992 até os dias atuais [N.T.: Karimov faleceu em setembro de 2016, aos 78 anos]; e Nursultan Nazarbaev, que presidiu o Cazaquistão nesse mesmo período. Também ocorreu a continuidade de antigos dirigentes soviéticos nos casos do Azerbaijão com Gueidar Aliyev, que foi dirigente do país entre 1993 e 2003; no Quirquistão, onde Askar Akayev governou o país entre 1990 e 2005 e na Geórgia com Eduard Shevardnadze, que foi presidente entre 1992 e 2003.

No caso da Rússia, o governo de Yeltsin não somente se caracterizou pela aplicação de uma terapia de choque de um enorme custo econômico e social para o povo russo mas também deu lugar ao que alguns autores denominaram como “capitalismo delinquencial” ou “capitalismo criminoso”, considerando sua atuação a margem da lei e seu estreito vínculo com a oligarquia ou a máfia russa.

A atividade dos grupos mafiosos se manifestou claramente através de notórios escândalos durante os anos 90 e vários de seus principais representantes ocuparam importantes posições oficiais. Nomes como Boris Berezovski, Mikhail Khodorkovski, Vladimir Potanin, Roman Abramovich, Vladimir Gussinski e Oleg Deripaska são representativos da nova oligarquia russa integrada por pessoas que se enriqueceram rapidamente por meio da corrupção, do suborno e do crime, também ocupando pessoalmente cargos de importância no aparato estatal.

Se alguma prova fosse necessária para demonstrar o que se perdeu do socialismo nos 74 anos de existência da URSS, bastaria examinar os resultados da proclamada transição ao capitalismo real.

Na realidade, o desaparecimento do socialismo como sistema não produziu um avanço no desenvolvimento da sociedade, mas o contrário. Todas as repúblicas que integravam a URSS – em diferente medida – passaram para o mais brutal modelo neoliberal, cujos custos e consequências ainda hoje estão sendo pagos.

Basta assinalar que somente na Rússia durante os anos 90 não se conseguiu recuperar o PIB de 1991 – isso só se alcançaria em 2004, 13 anos depois –, a população reduziu de 148 milhões para 140 milhões de habitantes; a expectativa de vida entre os homens baixou de 65,5 para 57,3 anos; emigraram mais de 200 mil cientistas para o Ocidente; o salário real diminuiu 68,3% e a aposentadoria mínima real 67%; o coeficiente de GINI – que mede a desigualdade na distribuição de renda – subiu de 0,27 para 0,48; o rublo – que antes de 1991 era cotado acima do dólar – hoje um dólar equivale a 64.246 rublos daquela época; no final dos anos 90 calculava-se que 50,3% da população estava na pobreza, enquanto que a taxa de homicídios triplicou e a Rússia estava entre os 20 países mais corruptos do mundo.

Apesar de ter ganhado as eleições de 1996 – destacadas como fraudulentas por todos os observadores – o desgaste político de Yeltsin se acelerou, o que contribuiria a crise econômica de agosto de 1998, que marcou o ponto mais baixo no desempenho da economia russa pós-soviética, a qual se somou o deterioramento da própria saúde do mandatário. De tal modo, em agosto de 1999 Yeltsin nomeou Vladimir Putin como primeiro-ministro.

Putin provinha dos serviços de inteligência soviéticos, onde alcançou um grau de tenente coronel. Entre 1991 e 1996 trabalhou na equipe de Anatoli Sobchak, prefeito de São Petesburgo. Em 1996 foi trabalhar na administração do Kremlin e em julho de 1998 foi nomeado chefe do Serviço Federal de Segurança.

A escolha de Putin para suceder Yeltsin surpreendeu muitos analistas. Apesar de não ter figurado no centro da política russa até então, mostrou capacidade de dar continuidade e – ao mesmo tempo – desenvolver múltiplas iniciativas para recuperar a indispensável estabilidade do país e começar uma gradual recuperação de sua economia.

Enquanto às estruturas políticas, em 2001 Putin fundou o partido Rússia Unida, que desde então tem mantido a maioria dos votos no parlamento russo, permitindo que ele governe – junto a Dimitri Medvedev – sem grandes dificuldades internas.

Durante seu mandato – e especialmente a partir de 2007 – as posições nacionalistas de Putin foram se fortalecendo, enfrentando com maior força os interesses hegemônicos do Ocidente e prestando especial atenção à recomposição do poderio militar do país. Tudo isso lhe valeu um grande apoio popular, com políticas que também têm melhorado gradualmente as condições de vida da população.

Atualmente os indicadores socioeconômicos da Rússia não mostram os desastrosos resultados da época de Yeltsin, mas a economia ainda não mudou no essencial a sua estrutura produtiva e as crises impactam nela com maior força em relação a outros países desenvolvidos. Trata-se assim de uma sociedade capitalista “de segunda ordem” a qual – além disso – os Estados Unidos buscam destruir no aspecto militar.

Notas

[1] Para este trabalho, o autor se apoiou no capítulo I de seu livro El derrumbe del socialismo em Europa (Ruth Casa Editorial e Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2014) e no ensaio “La perestroika en la economía soviética (1985-1991)” incluído no livro de Serguei Glazov, Kara-Murza e Batchikov El libro blanco de las reformas neoliberales en Rusia. 1991-2004 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2007). Também se recomenda o capítulo I do livro de Ariel Dacal e Francisco Brown, Rusia Del socialismo real al capitalismo real (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2005), assim como os capítulos 4 e 5 do livro de Roger Keeran e Thomas Kenny Socialismo traicionado. Tras el colapso de la Unión Soviética 1917-1991 (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2013).

[2] V.I. Lenin, “Informe político al undécimo congreso del partido” em La última lucha de Lenin. Discurso y escritos (1922-1923), Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2011, pp. 55 e 69.

[3] Lenin havia percebido os perigos que carregava a personalidade de Stalin e desde seu leito de doente se pronunciou ao escrever: “Stalin é muito rude, e este defeito, ainda que tolerável em nosso meio e nas relações entre nós, os comunistas, é intolerável no cargo de secretário-geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem em uma maneira de retirar Stalin desse cargo e designar em seu lugar outra pessoa que em todos os aspectos tenha sobre o camarada Stalin uma só vantagem: a de ser mais tolerante, mais leal, mais cortês e tenha mais consideração para com os camaradas, menos caprichoso etc.” (V.I. Lenin. Carta al congreso del partido, Op. Cit. pp. 232-233. Desde já nesse documento Lenin se pronunciaria também criticamente sobre outros membros do burô político, mas alertando especialmente sobre o perigo de ruptura pelo enfrentamento entre Trotsky e Stalin, coisa que a história se encarregaria de confirmar pouco tempo depois.

[4] Dacal e Brown, Op. Cit. pp. 4-5.

[5] Basta o seguinte exemplo: “O Comitê Central do Partido Comunista eleito em 1934 tinha 71 membros. No início de 1939 restavam 21. Três morreram de morte natural, um (Serguei Kirov) foi assassinado, outro se suicidou, 9 foram tidos como fuzilados e outros 36 desapareceram.” (G.D.H. Cole. Historia del Pensamiento Socialista. Tomo IV Socialismo y Fascismo 1931-1939. Fondo de Cultura Económica, México, 1963, p. 233.

* Assessor do Centro de Investigações da Economia Mundial (CIEM). Foi ministro da Economia de Cuba. Artigo publicado em13 de julho de 2016.

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