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Diário Liberdade
Terça, 30 Mai 2017 17:19

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 7

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

Junto das luzes e motores acesos das motocicletas e caminhões da Patrulha Fronteiriça escutamos uma chuva de impropérios nessa mescla chamada spanglish. Era de notar que nos esperavam com ânsias para caçar-nos como a animais. Certamente houve mudança de guarda na linha fronteiriça mas mais adiante e com a experiência de sagazes caçadores, outro nutrido grupo de policiais esperava suas presas.


História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 1

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 2

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 3

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 4

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 5

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 6

Havia escutado por minhas companheiras de travessia que os veículos onde transportavam os indocumentados tinham forma de canil, e eu pude comprovar. São pickups que levam uma jaula com grades atrás onde podem trancar ao menos umas trinta pessoas.

Instantaneamente com o som dos automotores o sem-fim de indocumentados começou a dispersar. Corríamos sem direção em tentativas de fugir da caçada e não sermos encurralados. Primeiro vieram os insultos que recebemos de parte da Patrulha Fronteiriça e logo se encarregaram de nos alvejar com balas. Por auto-falantes nos gritavam e riam burlando-se da nossa condição de presas fáceis. Nos acusavam de sermos contrabandistas e assassinos, de chegarmos aos Estados Unidos ilegalmente para roubar o trabalho dos “bons americanos” e daqueles que residem legalmente por lá.

Nos diziam para voltarmos pelo mesmo caminho que viemos porque não éramos bem-vindos no país. Gritavam afirmando que se quisessem poderiam nos matar e ninguém os faria enfrentar qualquer processo legal por isso, afinal, o que estavam fazendo era salvar o país do “lixo latino americano”.

- Fora do território dos Estados Unidos! Senão iremos matar ratos e quem sobreviver vai passar a vida inteira em uma prisão por entrar aqui sem documentos! Ladrões! Assassinos! Putas! E você aí magrelo, o que quer? Veio pedir comida? Fora! Fora! Fora! – gritavam.

As pessoas corriam desesperadamente e eram perseguidas por uma massa de policiais em motos e camionetes. O tempo castigava nossas pernas exaustas e por mais esforço que fizéssemos não conseguíamos sair do lugar. A angústia, a incerteza e o desejo de escapar faziam do pânico o nosso pior inimigo. Sem noção alguma de onde estávamos parados, corríamos em todas as direções. Nos topávamos uns com os outros e nem estávamos lá tão longe da linha divisória para que os grupos pudessem seguir separados.

As balas penetravam pelas costas, rostos, músculos e as pessoas desvaneciam entre ramos de cactos e pedras que silenciosas guardam histórias deste deserto, que é vigoroso como cartão postal.

Enquanto uns disparavam outros abaixavam o zíper das calcas e mostravam suas genitais como forma de intimidar e como uma provocação total. Sabiam que tinham o controle da situação porque contavam com radares, helicópteros, aviões, armas e veículos terrestres onde poderiam se transportar; nós, ao contrário, tínhamos muito cansaço e o ímpeto de sair do deserto com vida.

Com tacos de beisebol golpeavam a qualquer um que atravessasse seus caminhos, amarravam mãos e pés e encostavam o queixo no peito, esperando uma jaula para trancá-los após os golpes. Os feridos de bala eram deixados ali mesmo onde caíam, sabiam que agonizariam lentamente até que seus corpos sem vida fossem encontrados por grupos humanitários que internam-se no deserto em busca de sobreviventes da travessia. Caso tudo isso desse errado, seriam devorados por aves de rapina e seus ossos seriam adicionados à superfície desolada que vela em silêncio a incontáveis defuntos sem nome.

Corremos sem olhar pra trás e nos lançamos sem pensar sobre alguns cactos e pequenos montes de pedra cujas pontas tomavam forma de dardos que se metiam na nossa pele e à toda velocidade, com a qual o pesar fazia palpitar nossos corações atordoados. Não podíamos estar mais de um em cada cacto porque não eram roliços o suficiente e assim ficaríamos em absoluta visibilidade. Deixei a garota que tinha o tornozelo lesionado escondida entre duas amoreiras e busquei um esconderijo pra mim. Não podia correr porque as balas passavam em todas as direções, então fiz da forma em que na minha infância eu atravessava os alambrados de Maria de Tomatal: jogada no chão, de bruços e arrastando-me com a ponta dos pés e cotovelos sem levantar a cabeça nem para situar minha direção.

Esperamos que a polícia se afastasse da zona de combate para nos mobilizarmos e sair do setor onde nos teriam rodeados. Enquanto isso, observávamos a forma como golpeavam homens, mulheres e crianças por igual. Duas adolescentes foram abusadas sexualmente, rasgaram suas roupas, abriram suas pernas com golpes de ponta de bota e as abusaram por trás. Os gritos eram desesperadores e martelavam os tímpanos. Quando terminaram, lhes deixaram um balaço na têmpora, subiram em suas motos e foram embora. Mais duas vidas perdidas no deserto do Arizona.

O barulho dessas duas balas durante anos me despertou a uma da madrugada em ponto, retumbava nos meus pesadelos com a travessia. Foi a essa hora as mataram. Não pudemos fazer nada, estávamos rodeados de policiais e um movimento mais suave que fosse poderia fazer com que grunhissem os ramos das plantas secas que nos escondiam daquele terror.

E em uma tentativa de postergar a morte o silêncio nos maniatou.

O bando de policiais foi se distanciando do local onde estava meu grupo, aproveitamos para nos mobilizar e nos arrastando entre dunas, pedras e matagais secos conseguimos escapar do lugar. O barulho dos tacos de beisebol golpeando corpos de indocumentados e os gritos de aflição suplicando piedade perfuraram o sigilo daquele descampado que a quem conseguiu sobreviver a ele, deixou marcas inapagáveis. Em mim instalou-se o ser anti-social e me tranquei sob quatro chaves sem que ninguém se atrevesse sequer a bater na porta do meu sótão.

E quando conseguimos nos afastar uns quinhentos metros daquele ponto pensamos que o pesadelo estava acabando, mas não, acabara de começar.

Glossário:

Spanglish – Como o “portunhol” sul americano, o spanglish é muito comum nas Américas Central e do Norte pois junta, em linguagem informal, os dois idiomas dominantes da região: espanhol e inglês.

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