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Diário Liberdade
Quinta, 02 Junho 2016 01:16 Última modificação em Sábado, 26 Novembro 2016 21:56

A natureza da crise sistêmica global: às vésperas do choque das placas tectônicas do capital (Parte II)

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Edmilson Costa

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O significado das transformações

Esse conjunto de fenômenos novos produziu também uma plêiade de modificações tanto objetivas quanto subjetivas nas relações econômicas, sociais, políticas e culturais no sistema capitalista. As mudanças, comandadas pelas tecnologias da informação, biotecnologia e engenharia genética e a microeletrônica, alteraram de maneira radical a base produtiva do capitalismo, de forma semelhante às duas revoluções industriais anteriores. Vale ressaltar que a primeira revolução industrial fez emergir a mecanização das fábricas e a produção em massa, deslocando os homens práticos para simples apêndices do sistema produtivo. A segunda revolução industrial e a emergência do capitalismo monopolista, possibilitaram a formação das grandes empresas e a construção das linhas de produção. Esse processo consolidou novos ramos industriais como a metal-mecânica, a química e os plásticos, resultando na produção generalizada dos bens de consumo duráveis e num impulso gigantesco para o desenvolvimento das forças produtivas. [1] 


Leia a parte I deste artigo aqui.

Mais especificamente, a internacionalização da produção teve impactos profundos na economia capitalista. Pela primeira vez na história, a burguesia dos países centrais passou a extrair, de maneira generalizada, o valor fora de suas fronteiras nacionais [2] , tornando assim uma classe exploradora direta tanto dos trabalhadores da periferia quanto dos próprios países industrializados. Anteriormente, o valor era capturado através do comércio internacional e da exportação de capitais. No primeiro caso, os países periféricos vendiam matérias-primas para os países centrais e compravam destes os produtos industrializados, gerando assim o que Samir Amin denominou de troca desigual, pois a produtividade dos produtos manufaturados é maior que a dos produtos de origem agropecuária ou mineral. No segundo caso, os países centrais se apropriavam dos juros e das remessas de lucro em função dos capitais investidos ou dos financiamentos realizados na periferia. Dessa forma, somente com a internacionalização da produção, o capitalismo se transformou efetivamente num sistema mundial completo. 

Essa nova configuração do capitalismo, com a interconexão orgânica de sua base produtiva, transformou o mundo numa imensa fonte de matérias-primas e mão de obra à sua disposição do capital, possibilitou a padronização das peças e a produção descentralizada dos bens e transformou os velhos monopólios em corporações transnacionais, que passaram a operar diretamente no interior de cada País. Na prática, tornaram-se destacamentos avançados do grande capital, com influência direta na formulação e operação de políticas econômicas das nações onde se instalaram, especialmente na periferia. A internacionalização da produção possibilitou também o surgimento de um fenômeno novo na dinâmica macroeconômica global: a emergência de um ciclo único do capitalismo, transformando as crises, que antes eram localizadas em países ou regiões, em crises mundiais e cortando assim as rotas de fuga do capital para áreas sem crises. 

Outro dado a se constatar é o fato de que as forças produtivas nas últimas sete décadas, especialmente no último meio século, criaram uma capacidade de produção tão extraordinária que deixaram o sistema com reduzidas possibilidades de desenvolver todo seu potencial, fato que o aproxima de seu limite de reprodução, dado à superacumulação de capitais e insuficiência de demanda por bens de produção e bens de consumo. Essa debilidade explica, em boa parte, o fenômeno da financeirização da riqueza ou a fuga para frente do capital buscando valorizar artificialmente esses recursos na órbita financeira através do frenesi especulativo. Sem condições de aterrisagem no chão das fábricas, uma vez que isso levaria a uma gigantesca crise de superprodução de mercadorias, o capital empreendeu essa aventura desesperada para a órbita da circulação imaginando escapar da lei do valor, mas isso apenas adiou a crise sistêmica global, que viria a se manifestar em 2007-2008. 

Em outras palavras, a fuga para a financeirização é uma espécie de contraponto funcional à incapacidade do sistema de desenvolver plenamente toda sua potencialidade de produção mediante o pleno funcionamento dos novos e sofisticados ramos produtivos. As modificações também obrigaram o grande capital a realizar uma espécie de remonopolização burguesa, cujos exemplos mais significativos são as fusões e aquisições que ocorreram em escala global e que modificaram completamente o perfil societário do grande capital. Se avaliarmos o capitalismo hoje, é fácil constatar que os velhos monopólios do final do século XIX, inicio do século XXI, já não compõem mais a parte hegemônica do sistema capitalista. Foram substituídos, na maioria dos setores produtivos, financeiros e comerciais, por novos monopólios, mais sofisticados e mais ávidos por lucros, em plena sintonia com os postulados neoliberais, cuja ofensiva vem buscando refundar todos os estatutos da dominação, numa espécie de vingança histórica de classe contra o mundo do trabalho. [3] 

As transformações também tiveram grande impacto no mundo do trabalho, com a mudança expressiva do perfil dos trabalhadores. Como os novos ramos industriais têm elevado grau de sofisticação tecnológica, necessitou também de uma mão-de-obra qualificada e especializada, o que deslocou para segundo plano o tradicional proletariado da segunda revolução industrial. Entrou em cena um novo proletariado, constituído pelos trabalhadores na indústria da informática, telecomunicações, telemática, plataformas digitais, desenvolvedores de softwares, engenheiros e desenvolvedores da indústria biotecnológica e da engenharia genética. Esse novo proletariado, mais jovem e mais instruído, pode ser considerado o contraponto do novo padrão tecnológico do capital. 

As transformações na base produtivas também foram acompanhadas de modificações profundas na área financeira. O processo de internacionalização das finanças seguiu passos semelhantes e marcou de maneira profunda o sistema capitalista, ressaltando- se que o polo financeiro do capital absorveu de maneira plena as novas tecnologias, especialmente a internet, e registrou um desenvolvimento sem precedente em toda a sua história. Pela primeira vez, o setor financeiro conseguiu superar a barreira do espaço e do tempo econômico e conseguiu autoacrescentar o capital fictício nas 24 horas do dia, bastando para tanto ajustar seus negócios aos fusos horários das diversas praças financeiras mundiais. Esse processo transformou o polo financeiro no centro hegemônico dos negócios internacionais, a partir do momento em que consolidou a privatização da liquidez internacional com o mercado de eurodólares, ampliando esse processo com a desregulamentação e a livre mobilidade dos capitais. Nessa conjuntura, não foi difícil para o setor financeiro exercer sua imensa criatividade especulativa para transformar o mundo num imenso cassino. 

Os bancos tradicionais foram cedendo espaço para novas organizações financeiras, mais ousadas e mais agressivas, cujas operações apresentavam a vantagem de não estar amarrada às regulações como as instituições bancárias. [4] Dessa forma, as aplicações especulativas se transformaram na dinâmica principal da economia capitalista. Na sua saga para se apropriar de alguma forma de valor, o capital fictício aprisionou em suas malhas tanto as empresas produtivas quanto o orçamento do Estado.

a) No primeiro caso, os fundos financeiros ampliaram sua participação na gestão das empresas produtivas e transformaram a lógica do planejamento de longo prazo em estratégia de curto prazo, própria das finanças, de forma a fazer com as empresas se reorganizassem para apresentar resultados cada vez mais robustos para os acionistas. Esse processo explica a reestruturação produtiva, a reengenharia e os círculos de controles da produção e da qualidade, as demissões em massa de trabalhadores e a gestão das empresas por critérios das finanças, onde os departamentos financeiros dessas corporações passaram a ter um papel decisivo na performance das empresas, uma vez que grande parte dos resultados são obtidos na especulação financeira. [5] 

b) O Estado também caiu nas malhas do capital fictício, mediante o aumento da dívida pública e das elevadas taxas de juros cobradas pelo setor financeiro. Como os novos agentes financeiros ofereciam financiamento em abundância com maiores facilidades burocráticas e menores custos de transação, o Estado foi-se endividando continuamente a partir de uma política orientada pelos novos gestores políticos ligados ao neoliberalismo. Assim, uma parcela cada vez maior do orçamento foi sendo desviada para pagar os juros e amortizações da dívida pública até o ponto em que os próprios financiadores passaram a ditar o destino das políticas econômicas dos Estados.

A hegemonia das finanças teve como consequência macroeconômica um descolamento cada vez maior entre a órbita produtiva e a esfera financeira. Todos pareciam embriagados com o milagre da multiplicação dos lucros nas bolsas de valores e nos mercados de moedas, câmbio, metais, produtos agrícolas e, especialmente, nos chamados mercado de títulos derivativos, este último o suprassumo da especulação. Como se sabe, uma conjuntura dessa ordem, especialmente num ambiente de integração eletrônica dos mercados, os riscos sistêmicos e as rupturas de liquidez podem se propagar na velocidade da luz, podendo levar o sistema ao colapso, até mesmo porque a produção do valor é pouco expressiva diante das necessidades de valorização desses capitais fictícios. Sem bases reais de valorização, qualquer crise gera pânico e se propaga também com uma velocidade extraordinária , como aconteceu em 2008. 

Esquecendo as lições do passado 

A dimensão das mudanças na dinâmica do sistema capitalista e os riscos inerentes a uma grande crise não passaram despercebidos pelas mentes mais ilustradas dos gestores do capital. Eles tentaram reorganizar o capitalismo, mediante a radicalização dos mecanismos de mercado, a reestruturação produtiva, a desregulamentação e a livre mobilidade dos capitais, mas essas medidas contribuíram muito mais para acirrar as contradições do que para resolver os problemas colocados pela nova conjuntura. É um dado da realidade o fato de que as reformas realizadas no bojo da construção do pacto social-democrata do Estado do Bem Estar Social após a Segunda Guerra contribuíram para a instituição do mais longo período de crescimento e estabilidade do capitalismo, os chamados 30 anos gloriosos. A partir da segunda metade da década de 70, com a crise econômica de 1974-1975, a estagflação e o desemprego crônico, essa construção começou a ser questionada. A eleição de Tatcher e Reagan foi decisiva para a derrota do pacto social-democrata. Em seu lugar, instituiu-se uma nova política econômica inteiramente contrária aos postulados keynesianos, a partir dos países centrais, e que se tornaria hegemônica até os dias atuais. 

Como na fábula do escorpião e do sapo, [6] o capitalismo não pode negar o seu DNA. O intervalo das três décadas de concessões aos trabalhadores foi apenas uma tática em função da fragilidade com que o sistema saiu da segunda guerra. Tão logo reuniu condições para retomar seu curso natural, buscou desmantelar todo o arcabouço construído quando estava frágil, investiu contra os gastos públicos, os salários dos trabalhadores e os proventos dos pensionistas. Sem condições para atuar na economia real, buscou uma fuga desesperada para a órbita das finanças, além de tentar construir uma economia de serviços, centrada na especulação financeira. Durante algum tempo essa política conseguiu levar ao delírio os setores hegemônicos do capital, mas a crise sistêmica global veio demonstrar que essa a aventura era apenas uma miragem. 

Realmente, parece que os capitalistas têm memória muito curta: esqueceram-se rapidamente da Grande Depressão, da divisão do mundo em dois sistemas e das próprias concessões que foram obrigados a fazer no pós-guerra para poder sobreviver. Olvidaram-se também de que o sistema foi salvo por Keynes e sua política de intervenção do Estado na economia e gastos sociais. Como o escorpião da fábula, seguiram caminho inverso na crise sistêmica atual, mesmo sabendo que a crise já dura mais de nove anos e que até agora não se encontrou uma saída para os problemas colocados. Nessa perspectiva, os capitalistas ampliaram as medidas de expropriação dos trabalhadores, o corte nos gastos públicos e nas aposentadorias e levaram o mundo à recessão, e à queda na renda dos trabalhadores, tudo isso para continuar privilegiando uma minoria parasitária, enquanto a maioria da população está mergulhada no desemprego e na piora das condições de vida. 

Mas a estratégia capitalista, apesar de prejudicar a qualidade de vida dos trabalhadores e da população em geral, tornou mais clara e aberta a luta de classes em todo o mundo. No período dos chamados 30 anos gloriosos, a luta de classes ficara ofuscada pelo ambiente social e político do pacto social. Os trabalhadores conquistaram um conjunto de direitos e garantias que aumentaram os salários e melhoraram suas condições de vida e do trabalho, especialmente nos países centrais. Entretanto, nas três décadas depois da implantação do neoliberalismo, o capitalismo voltou e demonstrar sua verdadeira face, com aumento da exploração e concentração de renda. Para se ter uma ideia, o contingente representado pelo 1% mais rico da sociedade hoje tem renda superior aos 99% da população e apenas 62 multibilionários possuem mais renda que a metade população mais pobre do mundo, segundo relatório da Oxfan. [7] Mesmo nessas condições, a minoria parasitária continua radicalizando o processo de exploração, o saque ao fundo público, as políticas predatórias contra trabalhadores e pensionistas e avançando sobre direitos e garantias conquistados com sangue no passado. Toda essa conjuntura torna mais acirrada a luta de classes e mais didática as luta contra o capital, o que prenuncia um quadro de duras lutas sociais em todo o mundo. 

O choque das placas tectônicas 

As transformações profundas que ocorreram na base produtiva, financeira, comercial e de serviços em geral estão exigindo novas relações de produção no conjunto do sistema capitalista como ocorreu nas duas grandes crises sistêmicas anteriores. [8] Estamos em meio ao esgotamento de um longo ciclo do capital iniciado após a Segunda Guerra Mundial e a uma rebelião generalizada da base material do capitalismo contra a velha ordem construída no pós-guerra, cujos fundamentos são inadequados para esse novo patamar de acumulação do sistema. Isso explica em grande parte o fracasso das políticas implementadas pelos gestores do capital para sair da crise, uma vez que as velhas fórmulas aplicadas no passado não resolvem os problemas do presente. Como afirmávamos em trabalhos anteriores, esta crise é profunda, devastadora e de longa duração e somente será superada quando os problemas levantados pela própria crise foram solucionados. [9] Em outros termos, a crise só será revertida com mudanças também profundas na ordem econômica, social e política capitalista ou com a emergência de uma nova ordem fundada na propriedade social dos meios de produção. 

Até agora, os governos dos países centrais conseguiram reduzir os impactos mais devastadores da crise, mediante um conjunto de medidas que, apesar de negarem toda a ideologia e a trajetória neoliberal do período anterior, foram fundamentais para evitar o colapso da economia. Entre essas medidas podem se destacar: a injeção de cerca de 13 trilhões de dólares para salvar os bancos no período imediatamente posterior à crise, [10] a implantação das taxas de juros negativas e uma forte intervenção do Estado na economia, induzindo fusões e aquisições, encampando corporações quebradas e comprando títulos podres do sistema financeiro. Posteriormente, tanto o Federal Reserve quanto o Banco Central Europeu, realizaram novas injeções de moeda na economia, através das chamadas flexibilidades quantitativas (quantitative easing), mas nada disso foi suficiente para reverter a crise. Essas medidas foram objeto de intensa manipulação por parte de uma vasta rede mundial de comunicações, com o objetivo de distorcer informações e criar um clima de otimismo artificial, de forma a evitar que os trabalhadores e a população em geral tomassem conhecimento da gravidade da crise e passassem a questionar as autoridades políticas. 

É bem verdade que a crise fez grandes estragos no sistema financeiro, muitas instituições desapareceram, mas o grosso desse oligopólio sobreviveu, se fortaleceu e, por incrível que pareça, continuou a política especulativa global, criando bolhas nas bolsas de valores e nos mercados em geral, inclusive nos países da periferia, e obtendo elevados lucros com o dinheiro praticamente doado pelas autoridades monetárias. A crise também provocou forte recessão nos Estados Unidos, na Europa e Japão e em muitos países da periferia, mas esse processo não se tornou mais grave porque o elevado crescimento da China (em torno de 10% do PIB ao ano) serviu para suavizar a recessão nos países centrais e, especialmente nos países emergentes, em função das importações do mercado chinês e da forte demanda de matérias-primas por parte da sua indústria. Ressalte-se que a China é responsável por cerca de 30% do crescimento mundial e por 16% da produção global, o que explica o papel da economia chinesa na redução da crise naquele período. [11] 

Mas a conjuntura mudou bruscamente desde o ano passado porque todos os mecanismos institucionais e financeiros utilizados para reduzir a crise começaram a se esgotar. Parece consensual o fato de que a impressão pura e simples de dinheiro pelos bancos centrais, solução mágica sugerida por Friedman (jogar dinheiro de helicóptero), não surtirá mais efeito algum, pois a quantidade de moeda lançada na economia não só não reverteu a crise como está se constituindo numa bomba de efeito retardado. Inundar a economia com dinheiro a partir do nada, com os mercados já saturados pelo processo de emissão anterior, só aprofundaria a crise, com a emergência de novas bolhas especulativas, inflação e desvalorizações monetárias. Se a impressão de dinheiro sem lastro resolvesse as crises, o capitalismo seria um regime eterno. Portanto, esta rota de fuga está fechada. 

O segundo movimento que ajudou a reduzir os efeitos da crise, o crescimento acelerado da China, também mudou bruscamente. Agora a economia chinesa está se desacelerando e o Produto Interno Bruto chinês deverá cair para algo próximo da metade do que vinha apresentando até 2014, ou seja, em torno de 5 ou 6%. A redução do ritmo de crescimento chinês levou a uma queda brusca nos preços das commodities, com impactos bastante negativos entre as economias emergentes, principais exportadoras de matérias-primas, além de reduzir as vendas para o mercado chinês. Comparado com a performance de outros países, os 6% do PIB seria um crescimento vigoroso, mas nas circunstâncias da conjuntura mundial atual, esse é um golpe muito forte para a economia do planeta, dado os impactos macroeconômicos de uma redução desse nível na cambaleante economia global. Nessas circunstâncias, a rota de fuga do crescimento chinês também está cortada. 

Se as duas grandes variáveis que evitaram o colapso do sistema capitalista estão esgotadas, não deveria ser surpresa para ninguém que estejamos nos aproximando de um momento definitivo da crise, quando os efeitos do choque das placas tectônicas do capital, ou seja, as contradições mais profundas do sistema chegarão à superfície e levarão a outro momento da crise geral do sistema capitalista, muito maior do que a sua explosão em 2008. 

Recessão, crise bancárias e lutas sociais 

Os fortes indícios desse novo quadro internacional já estão bem visíveis, apesar do imenso poder manipulatório dos meios de comunicação. Não se trata aqui de prever o momento exato em que esse processo será detonado, mas elencar elementos objetivos da conjuntura, alguns bastante divulgados pela mídia, outros observados apenas nas entrelinhas e outros tantos baseados na experiência histórica dos antecedentes das crises.

a) A crise do sistema bancário é muito grande, a começar pelo Deutsche Bank, J. P. Morgan, Societé Generale, BNP Paribás, UniCredit e Credit Suisse, HSBC, os bancos italianos, entre outros menores. Todas essas instituições possuem grandes exposições no mercado de títulos derivativos, bem como junto às empresas da área de commodities e de energia que estão em dificuldades econômicas. Como o mercado costuma precificar o desempenho das instituições financeiras pelas expectativas em relação ao futuro, nada mais natural que o preço das ações dos bancos venha despencando em todo o mundo, movimento que continuará à medida que a crise se agravar. Como o sistema financeiro está praticamente todo interligado por dezenas de canais especulativos e de crédito, uma quebra em um dos grandes bancos ou grande empresa ligada a esses bancos pode acionar uma quebradeira geral, como ocorreu com o Lehmann Bhothers em 2008; 

b) A recente queda nas bolsas de valores em todo o mundo é um sintoma de que a bolha especulativa, construída com dinheiro quase de graça do FED e do BCE, está se desinflando. As bolsas são instituições basicamente especulativas, mas não flutuam no vácuo: elas têm ligação com a economia real e as oscilações bruscas geralmente antecedem momentos difíceis para a economia. Portanto, as oscilações bruscas no preço das ações são também resultado das expectativas pessimistas dos agentes econômicos diante da recessão mundial que se avizinha nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e nos países periféricos, além da redução do comércio mundial, retração do crescimento da China e da possibilidade de descumprimento do pagamento das dívidas públicas em função da conjuntura adversa. 

c) Os reflexos dessa conjuntura nos Estados Unidos podem ser observados na crise do setor energético, em consequência da queda no preço do petróleo; na crise do comércio varejista e ainda na crise da infraestrutura do País, fato pouco comentado pela mídia corporativa. O preço do petróleo, com uma queda de mais de 75% de seu valor em relação a 2014, está não só inviabilizando economicamente a indústria de energia a partir do xisto, como tem levado à falência dezenas de empresas nessa área. Vale ressaltar que o setor de energia teve um papel anticíclico importante nos últimos anos nos Estados Unidos. Diante da queda no ritmo da atividade econômica e a redução dos salários, a crise também vem atingindo as cadeias varejistas, todas elas muito sensíveis à questão da renda da população. O Wal-Mart, McDonald, Gap, Macy, Sears já anunciaram o fechamento de centenas de lojas no País devido queda acentuada no consumo da população. 

d) Empresas ligadas ao comércio de commodities, como a Glencore, a maior do mundo no ramo, Trafigura e Grupo Noble estão com grandes dificuldades não só em consequência da queda nos preços das commodities, mas especialmente porque todas elas estão expostas de maneira muito acentuada no mercado de derivativos. Ressalte-se que os bancos têm U$500 mil milhões em exposição com as empresas de commodities. Nessa conjuntura, a teia de relações entre os agentes econômicos dos mais variados setores da economia fornece mais combustível para o agravamento da crise. Basta um elemento detonador para que a crise se espalhe pelos circuitos do sistema, com as consequências que todos podem imaginar.

Mas é necessário ressaltar que esses elementos da crise representam apenas a ponta do iceberg de um processo muito mais profundo e desestabilizador que é a crise do próprio sistema capitalista. O sistema está doente e permanecerá enfermo enquanto todos os problemas colocados pela crise não forem resolvidos. Estamos nos aproximando daqueles momentos históricos em que a conjuntura pode mudar com uma velocidade extraordinária e acontecimentos antes impensáveis podem se transformar em fatos corriqueiros. Mesmo com toda a ofensiva do capital, o quadro de aparente calmaria pode mudar bruscamente se as massas se colocarem em movimento. Todas as revoltas sociais foram precedidas de uma conjuntura de aparente calmaria, mas muita tensão social. 

Vale lembrar que há um descontentamento generalizado da população contra a ordem econômica, social e política do capitalismo, sistema que funciona na prática apenas para 1% dos mais ricos, enquanto os 99% são os perdedores na corrida pela apropriação da renda. Há um descontentamento ainda maior com a velha política, os políticos e partidos tradicionais burgueses e o sistema representativo e institucional apartado do povo. É um sentimento ainda difuso, mas pode se transformar em mobilizações generalizadas com o agravamento da crise. As condições em que essa minoria parasitária está levando o mundo, em função da desigualdade e do aumento da pobreza, inclusive nos países centrais, especialmente nos Estados Unidos, se assemelha muito ao período anterior à revolução francesa ou ao início do século XX, quando a luta de classe se acirrou na Europa, resultando na revolução bolchevique. 

Numa conjuntura dessa ordem, o arcabouço institucional construído nas últimas décadas poderá se desarticular, porque está podre diante das necessidades de acumulação e de novas relações de produção do sistema. Esse é um processo que poderá abalar não somente os alicerces da velha economia, mas também as instituições políticas econômicas e sociais, além do poder das frações do capital que hoje dirigem o sistema capitalista. A crise poderá fazer emergir fenômenos nunca antes observados, em função dos impactos da uma desarticulação global da velha ordem, aliada a uma crise social e política de grandes proporções. Nessa conjuntura não será surpresa a emergência de manifestações das massas indignadas nas ruas de Nova York, Los Angeles, Paris, Londres, Roma, Madri, Atenas, entre outras principais cidades do mundo. Não está descartada a emergência de uma situação revolucionária de caráter global, cujo desfecho é muito difícil de prever, dada a imponderabilidade da conjuntura. [12] Mas o mundo será bastante diferente quando esta crise terminar. 

[1] Esta seção está baseada fundamentalmente em: Costa, Edmilson. A globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2009. 

[2] O primeiro autor a se referir à produção do valor fora das fronteiras nacionais foi Michalet: Charles-Albert. Capitalismo mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, muito embora esse autor não estivesse se referindo ao processo de globalização. 

[3] Costa, Edmilson. Para onde vai o capitalismo. Notas sobre a globalização neoliberal e a nova fase do capitalismo. In São Paulo: Aduaneiras, 2004. 

[4] Guttmann, Robert. As mutações do capital financeiro. In A mundialização financeira: gênero, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. 

[5] Serfati, Claude. O papel ativo dos grupos predominantemente industriais na financeirização da economia. In A mundialização financeira (coordenação de François Chesnais). São Paulo: Xamã, 1998. 

[6] Conta a fábula que o escorpião estava à beira de um rio e queria atravessá-lo, mas como não sabia nadar, se entrasse na água morreria. Foi então que chegou um sapo ao rio e o escorpião pediu-lhe uma carona. Hesitante, o sapo perguntou se ele não o mataria durante a travessia. Prontamente o escorpião respondeu: não poderei matá-lo porque também morreria afogado. O sapo se dispôs a levá-lo ao outro lado do rio, mas quando chegou na metade do caminho o escorpião picou fortemente o sapo. Perplexo com aquela atitude suicida o sapo perguntou: por que você me picou, não sabe que iremos morrer juntos? O escorpião respondeu: desculpa, senhor sapo, é a minha natureza. 

[7] www.oxfam.org . A economia para o 1%. Documento informativo 210 (Resumo em português). Acesso em 25 de fevereiro de 2016. A Oxfam é uma ONG que estuda as questões de distribuição de renda no mundo. 

[8] As duas grandes crises sistêmicas anteriores ocorreram em 1873-1896 e em 1929-1945. Todas essas crises provocaram mudanças de qualidade no sistema capitalista e em sua gestão. Na primeira, a consequência mais geral foi a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista e, no segundo, ocorreu a segunda guerra mundial e a divisão do mundo em dois sistemas, o socialista e o capitalista, e no interior dos países do capitalismo central os trabalhadores conquistaram um conjunto de direitos e garantias que ficaram conhecidos como Estado do Bem Estar Social. 

[9] Para uma compreensão mais profunda dos trabalhos anteriores, consultar: Costa, Edmilson. A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil. São Paulo: Edições ICP, 2013. 

[10] Whitney, Mike. 2010, o ano da contração econômica severa . Disponível em resistir.info. Acesso em 20/01/2010. 

[11] Sewel, Rob. Peligro: Se aproxima una depresión mundial. Disponível em www.marxism.com . Acesso em 15 de dezembro de 2015. 

[12] Há uma confusão generalizada sobre o conceito marxista de situação revolucionária. Geralmente, as pessoas imaginam que a situação revolucionária levará inevitavelmente à revolução, o que é um erro. A situação revolucionária é um período da luta de classes em que a crise do capital e as condições de vida das massas chegam a um ponto tal em que os de baixo já não aceitam viver como antes e os de cima já não conseguem dominar como sempre dominaram. Abre-se um período de luta entre os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores. O desfecho desse processo é imponderável: tanto pode haver uma vitória dos trabalhadores, quando também pode ocorrer um retrocesso muito grande, como foi o período do nazismo e do fascismo. 

*Edmilson Costa é doutor em economia pelo Instituto de Economia da Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor, entre outros, da A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (Edições ICP, 2013), além de vários ensaios publicados em revistas e sites do Brasil e do exterior. É membro do Comitê Central do PCB, diretor do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista Novos Temas.

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