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Por momentos subíamos a menina do tornozelo nas costas e em outros ela caminhava com a ajuda da sua muleta.
Não podíamos ver mais além de duzentos metros porque íamos em terreno plano mas a visibilidade era baixa por conta dos cactos. Finalmente começamos a escutar o som de automóveis e sem lugar para dúvidas estávamos perto de uma estrada.
Encontramos a estrada e a cruzamos um por um o mais rápido possível. Quilômetros adiante havia outra estrada e usamos a mesma técnica para cruzá-la.
Nos tocou subir uma espécie de colina que não era lá tão alta mas desde seu cume pudemos ver à distancia altas torres de cabos elétricos o que indicava que estávamos perto de algum povoado. A alegria nos animou e avançamos. Eu tocava sempre no meu joelho e lhe dizia que a dor que não iria me vencer ainda que me fizesse chorar desconsoladamente, e todo o tempo caminhei desgarrada do grupo uns cem metros. Ninguém se atreveu a me dizer uma só palavra, creio que a expressão no meu rosto e minha fúria já diziam tudo.
Nos sentamos para descansar e o crepúsculo começou a encher de cores o céu desnudo. Distraídos com a ilusão de estarmos próximos da saída nos surpreendeu um nativo norte americano que andava a cavalo. Não foi de maneira alguma um delírio do deserto, era um nativo que nos viu e seguiu seu caminho sem parar e tampouco sem inquietar-se. Estávamos em uma reserva indígena. Passamos a noite ali e ao amanhecer seguimos viagem. Já era o terceiro dia.
Não podíamos sair para a estrada em grupo e pedir ajuda porque a primeira coisa que podiam fazer era chamar a polícia e nos entregarem – não havíamos arriscado nossas vidas para isso. O coyote carregava seu celular mas até o momento não havia conseguido nenhum sinal. Ele tinha de dizer onde estávamos para que viesse nos buscar o pessoal do esquema todo.
Passados os anos comecei a investigar e a buscar em mapas e pude confirmar que depois de descermos daquele exuberante morro caminhamos por reservas indígenas, florestais e parques protegidos. Nosso caminho no princípio deveria nos conduzir até Douglas, no Arizona, mas graças a esse extravio fomos parar perto de Tucson.
O caminho se fez mais penoso e com morro atrás de morro fomos subindo e baixando, assim foi este dia para nós até que ao entardecer o coyote conseguiu sinal e as indicações eram para que chegássemos a certa autopista para que nos viessem buscar. Estávamos a cinco horas deste destino.
Deixamos as mochilas jogadas no chão e por ordens do pessoal do esquema só podíamos levar postas nossas roupas, nada de suéteres duplos nem mochilas. Ali deixamos tudo, mas eu mantive na minha bolsa as calças e o recipiente com listerine e talco.
Entre as minhas manias está a de enxaguar a boca com anti-séptico bucal pelo menos três vezes ao dia, me encanta essa sensação de frescor e se não faço isso me sinto incomoda. Outra mania é a de utilizar talcos nos pés porque detesto quando andam pegajosos, já sei que no deserto houve certa extravagância mas foi assim que aconteceu e é motivo de piadas dos meus familiares e amigos mais próximos que souberam dessa cascata. Quem mais teria uma preocupação dessas? Ninguém. Só eu mesma. Essa coisa sui generis não é mero gosto.
A última colina que subimos nos mostrou o povoado mais próximo com suas luzes acesas. Aquela sensação e aquele momento eu pude reviver anos depois quando vi o filme El Norte. Chorei em cada cena.
Às dez da noite chegamos ao lugar indicado e três carros apareceram cantando pneu e pararam sem apagarem o motor. Saímos correndo do deserto e entramos neles. As indicações foram similares ao modo de operação das organizações de Água Prieta quando subimos nos taxis. Por ser a mais grandota, fiquei no chão e outras três mulheres deitaram sobre mim. Ninguém sentou no banco de trás; junto do piloto iam mais dois, uma sentada no banco do co-piloto e outra encolhida sob os pés da primeira. As outras pessoas iam no porta-malas. Os homens se repartiram nos outros carros usando a mesma técnica. Os automóveis eram sedan de anos recentes. E cantando pneus afastaram-se do deserto pegando a estrada que ia para Phoenix.
No caminho o coyote nos ameaçou com uma pistola e disse que não nos movêssemos porque a La Migra não andava sempre uniformizada e se viam um carro suspeito com vários tripulantes eles parariam, e isso podia acontecer conosco. A mesma ameaça nos fez, de que se nos descobrissem e o dedurássemos que nos mataria ali e depois daria um tiro em si mesmo. Não vimos o caminho porque estávamos deitadas de cabeça para baixo.
Horas depois chegamos a cidade de Phoenix e pudemos sair do carro quando já estávamos no estacionamento de uma mansão. Era a sede onde nos encontramos com outras dezenas de migrantes que esperavam para serem transladados a distintos estados onde estavam seus familiares.
Nos abraçamos todos do grupo quando nos vimos ali, havíamos conseguido sobreviver a fronteira. Um jovem de uns vinte anos de idade saiu de um quarto com um menino de uns seis anos em suas mãos. O garoto saiu correndo desesperadamente e se lançou sobre a moça do tornozelo lesionado chamando-a de mamãe! A cena me deixou sem respiração. Mais ainda quando ela o abraçou comovida e o encheu de beijos. Logo se colocou de pé, levantou a blusa e começou a tirar a faixa que escondia sua gravidez. Vê-la com a faixa em mãos nos surpreendeu, soube esconder bem a barriga de cinco meses e nunca nos disse que estava grávida. Não pude lidar com tamanho assombro e me desmoronei por completo ao abraçá-la e fiquei beijando sua pança.
Todas as dores me foram quitadas quando senti seu bebê se mover dentro do seu ventre. Também era um sobrevivente. Ela me abraçou com tal força que ainda sinto sua pele junto a minha. Se agachou e tentou beijar minha mão mas eu disse a ela que minha obrigação era ajudar todos a passarem com vida do deserto, que por algo os homens haviam decidido vir comigo e não podia decepcionar. Tinha que lhes mostrar que a sorte era certa. Disse isso com um sorriso desabrochando em ternura. Nesse momento todas nos abraçamos e choramos juntas.
Depois do jantar começaram a ligar para os familiares para realizar as entregas, não sem antes cobrar o dinheiro da extorsão. Afinal, o seqüestro também é parte dessa fronteira.
Glossário:
Coyote – pessoa que em troca de pagamento em dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira.
La Migra – gíria usada para definir policiais, patrulha fronteiriça e seguranças particulares, em geral, que caçam migrantes no deserto.